Cimi Regional Goiás/Tocantins.- Bela Vista de Goiás, uma pequena cidade no interior do estado aproximadamente a 60 km de Goiânia, foi palco de um importante julgamento na última segunda-feira, 11 de julho. Há 14 anos, a liderança indígena Dalma Régia Marinho Montel, do povo Kanela do Tocantins, que se encontrava morando neste município fora da aldeia, havia sido acusada, junto com seu esposo, de homicídio de um adolescente de 15 anos. A tragédia ocorreu em março de 2008.
A acusação se deu devido ao filho mais novo de Nega Kanela, como é conhecida popularmente, ter tido alguns incidentes após sofrer agressões por parte do adolescente. Quando o jovem chegou em casa com a boca sangrando, Nega e o ex-marido saíram para dialogar com a mãe do adolescente para que, de forma adulta, resolvessem esse problema.
Contudo, no caminho deparam-se com o transporte em que estavam os alunos. Houve então uma briga entre o então esposo de Nega e o adolescente que havia agredido o filho da indígena. O adolescente fugiu, vindo a notícia do óbito no dia seguinte.
Como consequência, Dalma e seu ex-esposo foram denunciados e acusados pela morte do adolescente. Temendo pela vida após terem sua casa queimada, o casal saiu da cidade. Alguns anos depois, ela retornou para a aldeia no município de Araguaçu (TO).
Temendo pela vida após terem sua casa queimada, o casal saiu da cidade.
Já em 2011, no entanto, ao verem Dalma como principal liderança na luta pelo território e pelo reconhecimento do seu povo como indígena, os fazendeiros da região sentiram-se incomodados pela luta do povo Kanela do Tocantins. Eles descobriram sobre o processo criminal contra a indígena e começaram então a ameaçá-la, alegando que iriam denunciá-la e entregá-la à Justiça. Chegaram a contratar carros de som para intimidá-la pelas ruas da cidade de Araguaçu.
Em função das ameaças dos fazendeiros, a liderança Nega Kanela, decidiu buscar outro lugar para morar até a chegada do dia do julgamento. Nega Kanela precisou se afastar do movimento indígena para resguardar sua vida enquanto aguardava o julgamento. Assim, se passaram quase dez anos, tempo difícil e doloroso para ela e toda sua família, assim como para os povos indígenas, que a viram se afastar da luta até comprovar sua inocência.
Este longo julgamento, e a busca por justiça para Nega Kanela, chegou ao fim na última semana. O julgamento foi presidido pelo excelentíssimo juiz Dr. Paulo Afonso Amorim, na Comarca de Bela Vista de Goiás (GO). A acusação estava representada pelo Promotor de Justiça, Dr. Danny Sales e o corpo de defesa pela equipe da assessoria jurídica do Cimi na área criminal, pela Dra. Michael Nolan, Dra. Caroline Hilgert e Dr. Guilherme Madi Resende.
Nega Kanela precisou se afastar do movimento indígena para resguardar sua vida enquanto aguardava o julgamento.
Entre os povos indígenas, existe um laço de irmandade muito forte, por isso se chamam entre si de parentes. Essa relação de família ultrapassa a família extensa de cada povo e não tem limites de tempo e espaço. Por isso, neste momento importante do julgamento do júri popular de Dalma, estiveram presentes com ela representantes do povo indígena Xerente e, mesmo à distância, muitas lideranças dos outros povos do Tocantins, em solidariedade, enviando forças e desejando que a justiça pudesse reconhecer a inocência desta importante liderança indígena.
O juiz iniciou o júri popular chamando aos cidadãos de Bela Vista que formariam o júri neste ato jurídico e julgar Nega Kanela, sendo escolhidas 7 pessoas. Após o juiz dar as orientações, explicar a função do júri e ler a acusação, chamou duas testemunhas para escutar o seu depoimento e posteriormente escutar à acusada.
O Promotor de Justiça Dr. Danny Sales, de forma ética e comprometido com a justiça, manifestou que não encontrava prova nenhuma para que Dalma fosse condenada, assim como também não encontrava justificativa para que ela estivesse ali enfrentando o júri popular. Afirmou que ela não deveria estar sentada no banco dos réus. Que ela já tinha pago o bastante durante estes 14 anos, ao ter que perder sua casa e ver afetada a vida, o matrimônio e a família. “Peço aos senhores para absolver Dalma Régia, pois ela não matou o jovem”, concluiu.
O advogado do Cimi, Dr. Guilherme Resende, fez um agradecimento ao juiz Paulo Amorim e ao Promotor de Justiça, reconhecendo: “hoje realmente o senhor foi o verdadeiro promotor de justiça na verdadeira acepção da palavra, pois buscou que a justiça para Dalma fosse feita”.
“Peço aos senhores para absolver Dalma Régia, pois ela não matou o jovem”
Guilherme também agradeceu a sua equipe de trabalho, especialmente à Dra. Michael Nolan, pelo seu compromisso e trabalho exemplar no exercício da busca pela justiça, e à Dra. Caroline Hilgert por todo o trabalho realizado durante a instrução do processo que levou ao convencimento do Promotor de Justiça da inocência de Dalma. Além disso, foi uma aula brilhante para o júri, reconhecendo-o como o julgamento mais democrático, visto que é feito pelo povo.
Percebeu-se que tanto a acusação quanto a defesa estavam em sintonia no reconhecimento de que não havia nenhuma prova contra Nega Kanela pela morte do jovem. Pelo contrário, as provas apontam que Nega apenas tentou apartar a confusão. Assim, a prova de inocência de Dalma Régia foi respaldada desde os olhares da acusação e da defesa. E que as senhoras e senhores jurados não poderiam condenar a indígena, porque não havia dúvida de que ela era inocente.
Por parte da defesa, o Dr. Guilherme ressaltou que “a absolvição de Nega Kanela não é nenhum pedido de impunidade, pois havia de fato uma vítima que tinha ido à óbito, mas que a justiça não pode condenar a quem não cometeu um crime”.
“É à luz do dia que se faz justiça”, sustentou o Dr. Guilherme durante sua defesa. Assim, na manhã de uma segunda-feira, o juiz leu o veredito emanado do povo de Bela Vista de Goiás, representado no voto dos sete membros do júri, que inocentaram Dalma Régia Marinho Montel, ato democrático que teve como resposta, as lágrimas e choro de Nega ao ver confirmada sua inocência no voto justo do júri.
A alegria não foi plena, pois houve a perda de uma vida neste processo longo e doloroso, e a família enlutada merece todo o respeito e solidariedade. É importante que, na sociedade, se busque e promova a justiça e não a impunidade, o amor e não o ódio, o respeito e não a intolerância.
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