Por Charles B. Anthony.*
Chris Gunness viu um amigo e o filho morrer no bombardeio feito por Israel a uma escola da ONU, durante a chamada Operação Margem Protetora, realizada em 2014. Ao falar sobre o assunto com a emissora Al Jazeera, ele, que é porta-voz da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina), irrompeu em lágrimas, em vídeo que viralizou na internet. O britânico trabalha há oito anos no organismo da ONU para refugiados palestinos e, em entrevista, disse ter testemunhado a situação dos palestinos em Gaza passar de “desastrosa para francamente, completamente desumana”.
A UNRWA foi estabelecida em 1950 para realizar programas de trabalho e auxílio aos refugiados do conflito árabe-israelense de 1948. Única em seu compromisso de longa data com um grupo específico de refugiados, a UNRWA deu apoio a quatro gerações de refugiados palestinos desde sua origem. A organização atualmente provê assistência e proteção a 5 milhões de refugiados palestinos registrados, espalhados por Gaza, Cisjordânia, Síria, Líbano e Jordânia.
Gunness trabalhou para a BBC por 25 anos até que a perda de seu companheiro o levou a buscar por uma mudança. Integrou-se, então, ao escritório da UNSCO (Coordenação Especial da ONU para o Processo de Paz no Oriente Médio) e, a partir daí, abriu caminho para seu cargo na UNRWA. Ele disse estar plenamente consciente de que a nova tarefa envolvia um conflito de décadas, mas declarou que “não fazia nenhuma ideia da mais pura desumanidade na qual as pessoas podem afundar”.
Lágrimas virais
Durante a guerra de Gaza em 2014, Gunness irrompeu em lágrimas depois de uma entrevista à Al Jazeera. Israel havia acabado de bombardear uma escola da ONU, matando 15 pessoas, incluindo um colega dele e seu filho. Sem que Gunness soubesse, enquanto ele “desmoronava descontroladamente”, a câmera ainda estava filmando. O vídeo foi transmitido na TV e, dentro de horas, se tornou viral. Gunness passou a ser a notícia.
Veja o momento em que ele começa a chorar:
“Pensei que poderia perder meu emprego”, disse Gunness. Mas, em vez disso, afirmou, a reação dos colegas da ONU foi “de uma esmagadora simpatia”. Ele disse ter recebido “e-mails de pessoas do gabinete do Secretário-Geral dizendo que aquela tinha sido a coisa mais eloquente que tinham ouvido sobre o conflito fazia um bom tempo”.
Um alto funcionário da UNRWA, disse ele, escreveu: “Não há nada pior do que uma escorregada humanitária… siga em frente”.
Por que ele acha que suas lágrimas tiveram tanta ressonância? “Acho que demonstraram para muitas pessoas no mundo que existe senso verdadeiro de ultraje e indignação”, disse ele. “Se autoridades da ONU, e não só porta-vozes da ONU, perdem contato com a dignidade humana que se insere no âmago do trabalho que fazemos, então, estão gravemente pobres.”
Wikicommons
Milhares de casas foram destruídas durante guerra em 2014
Embora alguns o tenham criticado por causa do choro, ele permanece sem remorsos: “Se minhas lágrimas atraíram a atenção mundial para as lágrimas que estavam sendo derramadas em Gaza, então não tenho que pedir desculpas de modo algum”.
‘Completamente desumano’
Nos últimos oito anos de trabalho para a UNRWA, Gunness disse ter testemunhado a situação dos palestinos em Gaza passar de “desastrosa para francamente, completamente desumana”.
“Veja o bloqueio de Gaza,” disse ele. “No ano 2000, havia 80 mil pessoas dependendo da UNRWA para se alimentarem. Hoje, há 860 mil. Por uma questão de opção política, a comunidade internacional decidiu condenar aproximadamente 1 milhão de pessoas… à indignidade da dependência de ajuda”.
Ele é um crítico dos governos ocidentais – principais doadores da UNRWA – por não fazerem o suficiente para pôr fim ao conflito.
“Nós nunca vemos de fato ação política suficientemente robusta para fazer a diferença”, disse ele. A UNRWA “lida com o impacto do fracasso político, e é por esse motivo que nós sempre estamos defendendo que seja adotada ação política”. É a “falta de progresso político, a falta de ação política o que eu acho tão chocante, e permanece sendo algo que precisa acontecer se tiver de haver justiça para os palestinos”.
Por que Gaza não foi reconstruída?
Atualmente, diz ele, a UNRWA está atravessando a maior crise financeira de sua história, que limita gravemente o que se é capaz de fazer, incluindo a reconstrução de Gaza, estimada em quase “meio bilhão de dólares”. Durante a guerra de Gaza, 140 mil propriedades de refugiados foram “total ou parcialmente destruídas, ou impactadas pela guerra”. Passado um ano, somente uma casa foi reconstruída. “Essa “desgraça” leva a uma “sensação de real desespero em Gaza”.
Mas a reconstrução apenas não vai mudar a situação para quem está em Gaza, diz ele.
“Mesmo que Gaza fosse reconstruída amanhã de manhã e todo mundo vivesse em lindas casas, ainda seria preciso levantar o bloqueio. Gaza tem uma economia exportadora, “tem de receber de volta sua economia porque, sem ela, haverá continuamente instabilidade e conflito”, disse ele.
O peso financeiro sobre a UNRWA não podia ter vindo num pior momento: “É tão triste e irônico que a UNRWA tenha tido a pior crise financeira em sua história em um momento em que se tem extremismo sem precedentes na região e fluxos de refugiados sem precedentes para a Europa”. Ele considera que uma “UNRWA com plenos recursos” seria uma grave “ameaça ao extremismo, e um elemento entre muitas respostas internacionais distintas que deveríamos estar vendo”.
A atual intifada palestina
Desde outubro, a violência israelo-palestina deixou 65 palestinos e nove israelenses mortos. “Temos uma situação na qual do lado palestino há um senso de frustração e desespero”, disse ele.
Wikicommons
Ruínas em Beit Hanoun, no norte da Faixa de Gaza
Gunness citou “a violência dos colonos, que acontece amplamente com impunidade”, “não ter acesso à mesquita de Al Aqsa” e o “uso desproporcional da força” pelo Exército israelense como fatores “que levam os palestinos, especialmente uma nova geração de palestinos mais jovens, a sentir que não há futuro político”.
O porta-voz enfatizou que nem ele nem a ONU desculpam os ataques de palestinos com faca, “mas por outro lado, todos eles têm um contexto, e esse contexto é o aprofundamento da ocupação e a brutalidade que vem com ela”. A realidade tem “uma nova geração de palestinos mais jovens” que sentem que não há futuro político”.
Permanecendo neutro
Quando questionado sobre ficar neutro no que muitos consideram um conflito desequilibrado, Gunness disse concordar que “é um conflito muito desequilibrado, em que você tem um lado jogando pedras e o outro lado com frequência usando armas”, mas “só podemos fazer esse trabalho se permanecermos neutros” e a “neutralidade da UNRWA é a prata da família”.
Agência Efe
Palestino lança pedras contra tropas israelenses durante protesto realizado na última sexta-feira (16/11)
Ele fundamenta sua causa “dentro do escopo do humanitário” e “na lei internacional, sem desviar para o político”.
Guerra civil síria
A guerra civil síria impôs mais pressão à UNRWA: “Nosso apelo para a Síria foi 52% financiado. Nós nos reduzimos a dar aos refugiados o equivalente a 60 centavos de dólares diários por pessoa, no contexto da Síria”. Refugiados palestinos na Síria são “duplamente vulneráveis porque agora estão no Líbano, refugiados pela segunda vez”.
De 12 acampamentos de refugiados na Síria, sete “foram arrastados para a guerra e ficaram gravemente danificados, por isso as opções de fuga dos palestinos são severamente limitadas”.
Flickr/CC/Michael-Ann Cerniglia
Campo de refugiados palestinos nos arredores de Damasco, Síria, em 2009
O fluxo de refugiados sírios também impõe mais pressão sobre os refugiados no Líbano, disse ele: “No Líbano, os palestinos que vieram da Síria estavam conseguindo uma provisão de US$ 100 mensais como subsídio para aluguel. Isso acabou”, isso significa que milhares de famílias agora estão sem teto. Gunness pediu que o “Conselho de Segurança adote ação política significativa para iniciar o longo processo de parar com a guerra civil síria”: “guerras civis já foram interrompidas antes”, disse ele. “Isso não está além da inteligência do homem”.
Esperança
Gunness disse que a “UNRWA não quer nada mais do que fazer as malas e ir embora, mas isso acontecerá quando houver uma solução duradoura e justa para os refugiados palestinos, baseada na lei internacional, nas resoluções da ONU e, a propósito, em consultas aos refugiados.
Apesar do processo de paz ser quase inexistente, Gunness está otimista e acredita que a paz possa enfim se tornar realidade – embora diga que isso pode não acontecer enquanto está vivo.
“Os palestinos vão encontrar justiça e paz”, disse ele. “Assim que os palestinos puderem encontrar justiça e paz e segurança… outras pessoas na região também poderão ter justiça, paz e segurança.”
Até lá, Gunness não está indo para parte alguma.
“Existe muito trabalho bom para ser feito”, disse ele. “Assim que o trabalho com os refugiados palestinos se impregna na sua pele, não há caminho de volta… se você trabalha com comunidades que estão em tal desvantagem, você simplesmente fica lá. Você não tem escolha, a não ser seguir em frente”.
A entrevista completa pode ser escutada abaixo (em inglês):
Texto publicado originalmente pelo site Midle East Eye
* Londres, Middle East Eye.
Tradução: Maria Teresa de Souza.
Fonte: Opera Mundi.