É fundamental entender o que está acontecendo na Ucrânia, para entender também a conjuntura brasileira. Sobre uma possível nova ordem internacional a partir dos acontecimentos internacionais, faço algumas observações iniciais:
- A Rússia está cumprindo os seus objetivos na Guerra, com controle total sobre o leste da Ucrânia e se aproximando já do Sul do país. Ao contrário do que a mídia quer mostrar no mundo todo, os russos já realizaram uma boa parte do que foi estabelecido por Vladimir Putin, em fevereiro, no início da operação militar, como sendo os principais objetivos;
- Em 21 de fevereiro o governo russo reconheceu a independência das duas regiões separatistas da Ucrânia (Luhansk e Donetsk). Essas regiões do leste da Ucrânia, ancestralmente, são russas. A Ucrânia é parte integrante da história da Rússia;
- A Rússia interveio como um ato de legítima defesa. Os objetivos da invasão russa foram: a.proteger a população local de um genocídio, especialmente nas regiões separatistas; b. liquidar alvos militares e c. “desnazificar” o país. Desde o golpe de 2014, perpetrado pelos EUA, que derrubou Viktor Yanukovych, a Ucrânia foi tomada por nazistas. A Ucrânia é hoje o maior viveiro de nazistas que existe na Terra. Tudo indica que a Rússia não tem como objetivo ocupar definitivamente a Ucrânia (ainda que o desenrolar da guerra possa conduzir a muitas alternativas);
- Ao longo dos oito anos do conflito em Donbass, membros do Batalhão Azov – cujas ideias são semelhantes às dos ucranianos que colaboraram com os nazistas na Segunda Guerra Mundial, cometeram inúmeros crimes de guerra na região, incluindo sequestro, tortura e roubo. Alguns dos soldados utilizam símbolos nazistas, ou muito semelhantes;
5.O primeiro grande objetivo da ação da Rússia na guerra já foi atingido: a destruição de uma grande parte dos alvos militares. Claro que este objetivo mudou, na medida em que os países imperialistas estão mandando para a Ucrânia uma quantidade muito grande de armamentos. Isso obriga que a operação de destruição seja continuada;
6 O segundo grande objetivo, que é garantir a independência das regiões separatistas, está sendo alcançado também;
- Recentemente os EUA anunciaram a disponibilização aos ucranianos, 33 bilhões de Dólares de equipamento militar, no sistema de leasing, o que representa um apoio oficial dos EUA à Ucrânia, o que antes era apenas informal. Agora passa a ser oficialmente uma guerra entre o imperialismo, Estados Unidos à frente, e os russos. Desde o início esta é uma guerra entre a Rússia e o imperialismo, mas agora é oficial, os EUA assumiram isso oficialmente;
- O fato de o palco de guerra ser a Ucrânia é um detalhe, essa é uma guerra entre a Otan e a Rússia. Se fosse uma guerra entre Rússia e Ucrânia já teria acabado há muito tempo porque o poderio bélico, e a capacidade militar entre os dois países não se compara;
9.A tese de seria uma guerra entre dois impérios, não se sustenta. A Rússia não é um país imperialista, se o conceito utilizado for o conceito moderno, de um país que domina economicamente outros, tendo grandes empresas que monopolizam setores inteiros da economia e que dominam grandes fatias dos mercados mundiais. Não podemos confundir país grande (e a Rússia é o maior país da Terra, com território equivalente a mais de “dois Brasis”), com país imperialista. Este, dentre outras características, consegue colocar suas empresas e mercadorias em todos os recantos do globo.
- A base econômica da Rússia são as commodities, especialmente petróleo e gás. A Rússia tem até uma certa indústria, mas muito concentrada em alguns produtos. A pauta de exportação do país revela essa dependência da venda de produtos básicos, de baixo valor agregado: os principais produtos são petróleo bruto, derivados de petróleo, metais, gás natural e produtos químicos. Por outro lado, os principais produtos importados são automóveis, produtos farmacêuticos, máquinas, plásticos, uma pauta com maior valor agregado, o que é típico dos países subdesenvolvidos;
- A Rússia, claro, é uma potência na produção de hidrocarbonetos, ocupando a posição de principal exportador e segundo maior produtor de gás natural do mundo. É também o segundo maior exportador e terceiro maior produtor de petróleo. Essa é uma das razões pelas quais o monstruoso boicote econômico imposto ao país, não surtiu efeito (como indica inclusive a retomada recente do valor do rublo na comparação com as moedas fortes);
- É possível avaliar a posição da Rússia na economia mundial (pré-requisito para ser um país imperialista) pelo número que possui, de grandes empresas que dominam mercados mundiais. Nesse aspecto a lista Fortune Global, que traz as 500 mais lucrativas de 2020 é um farol: mais de 126 das quinhentas são empresas norte-americanas, 124 são chinesas, 53 são japonesas, 31 são francesas, 27 são alemãs, 22 são do Reino Unidos, 14 são da Coreia do Sul, 14 da Suiça, 13 do Canadá e 13 da Holanda. Somente estes 10 países tem 87% das mais lucrativas empresas do mundo;
- Dados sobre armamentos, ajudam também a entender a questão. A indústria norte-americana de armas representa 61% das vendas dos 25 maiores produtores mundiais. O segundo lugar no ranking, a China, fica bem atrás com 15,7%, segundo o relatório do Sipri (Instituto Internacional de Estudos para a Paz), que tem sede em Estocolmo. Essa indústria depende essencialmente do governo norte-americano, cujo orçamento de defesa, para este ano é de US$ 768 bilhões, superior ao acumulado dos 10 maiores orçamentos que vem em seguida, nesse ranking. As pessoas nem imaginam, mas o orçamento militar da Rússia para este ano corresponde a cerca de 8,5% do orçamento dos EUA;
- A indústria armamentista mundial e norte-americana nunca ganhou tanto dinheiro quanto agora. A estratégia deles é de guerra prolongada na Ucrânia, porque enfraquece a Rússia e faz muito dinheiro. Ao invés de tentar negociar com os russos, os EUA vêm procurando armar a Ucrânia, o que tende a alongar a guerra no tempo;
- A atitude da Rússia em face das provocações da OTAN na Ucrânia está abalando as estruturas do sistema mundial de dominação. A Rússia é um país oprimido, que sofre neste momento um ataque brutal do sistema imperialista, que atravessa uma crise inusitada. A Rússia, que está sendo cercada em mais de três décadas pelo avanço militar da OTAN, ficou anos tentando negociar um acordo com o governo da Ucrânia;
- O imperialismo está em grande crise e não pode perder de jeito nenhum a parada na Ucrânia. Os EUA sentem ainda na boca o amargo da derrota no Afeganistão, no ano passado, em que foram escorraçados do país pelo Taliban. Como entraram na guerra agora, em nome próprio, irão fazer de tudo para vencer. Por isso a guerra tende a se prolongar;
- A decisão de colocar 33 bilhões de dólares abertamente na guerra decorre do diagnóstico de que a coisa está feia. Pode virar um vexame, uma grande humilhação política para o imperialismo superior à guerra do Vietnã. Uma eventual derrota terá grande repercussão interna nos EUA. Trump se posicionou abertamente contra a guerra desde o início e vai colocar o dedo na ferida, dizendo que governo e o partido Democrata colocaram o país perante a maior derrota da história;
- Tem um ala dentro do imperialismo que é totalmente a favor de entrar no enfrentamento frontal com os russos. Joe Biden não participa desta ala, apesar de ser também um homem da guerra. Biden era o vice-presidente de Obama, quando deram o golpe de 2016 no Brasil. Mas entre os falcões da guerra nos EUA, ele é considerado um moderado;
- Em face da crise imperialista, a linha para a conflagração de uma terceira guerra mundial é muito tênue. Não parece que a guerra terá um desfecho tranquilo, porque, como é um conflito entre um país subdesenvolvido e o imperialismo, a tendência é escalar. O fato de que os EUA entraram oficialmente na guerra, tende a torná-la mais longa, o que coloca o claro risco de escalar;
- Os EUA não podem perder porque seria muito desmoralizante. Se a Rússia vai, cumpre os seus três objetivos principais e acaba a guerra, será a maior derrota da história dos EUA. Por outro lado, para a Rússia, é uma questão, literalmente, de vida ou morte, porque a Ucrânia na Otan significa armas nucleares na porta de casa. Por isso a guerra tende a agravar. Por exemplo, já se fala no uso de armas nucleares táticas na guerra.
21.Essas armas são aquelas que podem ser usadas em distâncias relativamente curtas. Isso as distingue das armas nucleares “estratégicas”. Na Guerra Fria, estas eram as bombas que as duas superpotências, os EUA e a União Soviética, podiam lançar a longas distâncias para os territórios uma da outra. Comenta-se que a Rússia tenha cerca de 2 mil armas nucleares táticas. Estas podem ser adaptadas em vários tipos de mísseis que normalmente são usados ??para lançar explosivos convencionais;
- As variantes do conflito são inúmeras e imprevisíveis. Mas a possibilidade de a guerra engrossar é muito grande. O fato é que o imperialismo não tem condições de sustentar o equilíbrio atual de forças, torna essa escalada quase uma necessidade geopolítica. O império americano precisa esmagar a Rússia e depois a China, que inclusive ameaça os EUA do ponto de vista econômico. No limite, os EUA precisam desmontar os Brics;
- É importante observar que a Rússia não ficou isolada internacionalmente. Países que, somados, têm a metade da população mundial ficaram com os russos. Claro, em alguns casos ficaram neutros porque estão sendo ameaçados pelo império. Entre os cinco maiores países do mundo (Estados Unidos, Rússia, China, Índia e Brasil) só os Estados Unidos apoiou o bloqueio econômico e político à Rússia (no caso, liderou o processo);
- Por detrás da ousadia na ação de ruptura do governo russo, está a visão de que os países do BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – são os pilares de uma nova ordem mundial. De fato, os países do BRICS representam quase metade da população mundial e grande parte do PIB global;
- Do ponto de vista da Europa, o bloqueio econômico é um verdadeiro tiro no próprio joelho. No caso do país forte da Europa, a Alemanha, há um verdadeiro desespero. Se os russos cortarem o gás para Alemanha, o país ficaria numa situação desesperadora, quase sem saída. A Rússia também não tem interesse, claro, em deixar de vender para a Europa. Há quase meio século o maior exportador de gás natural do mundo tem suprido regularmente a maior economia da Europa. Segundo dados da Rússia, em 2020 a Alemanha absorveu quase 20% de todas as suas exportações de gás;
- Com a crise econômica atual, possivelmente nenhum país da Europa, nem a Alemanha, que é considerado o motor da economia do continente, aguentasse enfrentar uma guerra. As populações desses países não querem saber de guerra. Ainda mais por razões basicamente norte-americanas;
- O bloqueio econômico feito à Rússia parece não estar prejudicando muito o país, mas está prejudicando muito a Europa. A região corre o risco de estagflação (combinação de estagnação econômica com inflação). O PIB dos 19 países da zona do Europa, cresceu apenas 0,2% nos primeiros três meses deste ano. A economia da França está estagnada, a da Itália em recessão e da Espanha em queda. A União Europeia enfrenta a maior inflação desde a implantação do Euro em 1999. Nos EUA, o índice de 8,5% é o mais elevado dos últimos 41 anos. Na Inglaterra, a inflação de 7% é a mais elevada em 30 anos;
- Num cenário como o atual os países tendem a se voltar para as suas potencialidades internas: mercado consumidor, valorização da indústria nacional, reestruturação produtiva etc. O Brasil é um dos países do mundo que tem as melhores condições econômicas de enfrentar uma situação na qual os países se voltem para dentro de si, ou seja, um período no qual a chamada globalização dê uma marcha a ré. Dispõe de petróleo abundante, alimentos, indústria, território etc.
29.A Rússia é outro país que dispõe de boas condições para enfrentar um isolamento econômico. É possível que o bloqueio que o país está sofrendo, como retaliação da OTAN, acabe beneficiando, no médio prazo, a sua economia, forçando por exemplo, a agregação de valor ao processo industrial. O boicote à Rússia, aliás, não é absoluto, vários países do mundo, que somam população equivalente à metade da população mundial, não aderiram ao boicote. Somente a população de China e Índia (dois países chaves que não aderiram ao boicote), somam quase 2,8 bilhões de habitantes, cerca de 35% da população mundial.
- Outros gigantes em termos territoriais não dispõem de algumas vantagens que tem o Brasil e a Rússia: os EUA dependem de importações de petróleo (apesar de ser o maior produtor). A China depende de importações de alimentos e petróleo. A Índia não tem diversificação industrial. E assim por diante.
José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina. Produz a coluna Análise Econômica no JTT, um programa aos sábados e co-apresenta o programa AgT, todos no Portal Desacato.
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