A história está sempre apressada para ver e fazer coisas que nunca antes foram vistas ou feitas. Mas até mesmo na sua busca insaciável por territórios desconhecidos, a história entende a importância de olhar para o passado e preservar a memória e as realizações daqueles que a impulsionaram.
Neste outono, pela primeira vez na saga norte-americana, um negro ou uma mulher estarão nas cédulas eleitorais na condição de candidato a presidente por um dos dois grandes partidos políticos dos Estados Unidos da América. Até mesmo o perdedor da disputa pela candidatura democrata entre Barack Obama e Hillary Clinton terá aberto novos horizontes e conquistado uma ou duas páginas nos livros de história.
Mas antes de Hillary e de Barack em 2008, houve Shirley em 1972.
Há 36 anos, a deputada federal Shirley Chisholm tornou-se a primeira mulher e a primeira pessoa negra a tentar obter a candidatura à presidência por um grande partido político.
Quando anunciou a sua decisão, em 25 de janeiro de 1972, ela já era uma figura histórica devido à sua eleição para a Câmara Federal em 1968, representando o 12° Distrito Congressual do Brooklyn. Aquela eleição fez dela a primeira mulher negra a ser eleita para o Congresso.
O seu slogan de campanha, e o título do seu primeiro livro, foi “Unbought and Unbossed” (literalmente algo como “Não Comprada e Sem Patrões”), e a sua noção de quem era tornou-se bem evidente quando, após tomar posse, ela declarou ao “Washington Post”: “Neste momento sou uma pessoa histórica, e estou bastante consciente disso”.
Chisholm também não perdeu tempo em exibir a sua franqueza e destemor quando desafiou o sistema de cargos baseado na antiguidade na Câmara, após ter sido colocada no Comitê de Agricultura, um grupo que pouco fazia pelo seu distrito urbano. Ela exigiu que fosse transferida e acabou recebendo uma cadeira no Comitê de Assuntos de Veteranos.
Filha de imigrantes, o seu pai veio da então Guiana Britânica e a mãe de Barbados, o orgulho de Chisholm pelo seu sexo e a sua etnia ficou evidente quando ela tornou-se um dos membros fundadores do Congressional Black Caucus (grupo parlamentar de negros no Congresso dos Estados Unidos) e da Organização Nacional para as Mulheres.
A sua independência refletiu-se no seu apoio a um parlamentar branco, Hale Boggs, para a liderança da Câmara, e não a John Conyers, que era negro.
A decisão de Chisholm de disputar a presidência não foi recebida com o entusiasmo festivo que tem marcado as campanhas de Hillary Clinton e de Barack Obama.
Desprezada pelo establishment político, incluindo a maioria dos seus colegas negros do sexo masculino, Chisholm embarcou em uma campanha heróica e idealista de inclusão que exibiu o intelecto, a paixão, a sagacidade e a grande habilidade oratória que a caracterizavam.
George McGovern conquistou a candidatura, mas Chisholm chegou até a Convenção Nacional Democrata em Miami, tendo obtido 152 delegados.
Chisholm era uma liberal declarada que defendia os direitos das mulheres e das pessoas negras, e foi uma feroz oponente da Guerra do Vietnã. Mas a essência do seu caráter foi revelada quando um dos seus oponentes na campanha pela candidatura democrata, o racista governador do Alabama, George Wallace, foi vítima de uma tentativa de assassinato em Maryland, um ataque que o deixou paralisado da cintura para baixo.
Chisholm o visitou no hospital e devido a isso foi criticada pela comunidade negra. Ela contou que quando Wallace a viu, perguntou: “O que o seu povo vai dizer?”. A sua resposta a ele foi: “Eu sei o que eles dirão. Mas eu não gostaria que o que aconteceu com você acontecesse com mais ninguém”. Wallace chorou.
No seu livro “The Good Fight” (“A Boa Luta”), Chisholm explicou porque disputou a presidência. “Disputei a presidência, apesar de não ter chances, para demonstrar a vontade pura e a recusa em aceitar o status quo”, escreveu ela. “Da próxima vez que uma mulher, ou um negro, ou um judeu, ou qualquer pessoa oriunda de um grupo que o país “não está pronto” para eleger para o seu cargo mais importante, disputar a presidência, acredito que ele ou ela será levado a sério desde o início”.
Chisholm morreu no Ano Novo de 2005 aos 80 anos de idade. Naquele ano, a cineasta Shola Lynch apresentou um notável documentário sobre a sua campanha, chamado “Chisholm 72: Unbought and Unbossed”. Nele, Chisholm diz que não queria ser lembrada apenas por ter sido a primeira congressista do sexo feminino ou a primeira mulher a tentar obter a candidatura à presidência por um grande partido político.
Ela afirmou: “Quero ser lembrada como uma mulher que lutou por mudanças no século 20. É isso o que desejo”.
Shirley, você conseguiu.
Tradução: UOL.