“Houve um momento no Estado brasileiro que havia uma política pública de violação de direitos humanos” (foto: Felipe Amaral)
Coordenador da Comissão Nacional da Verdade afirma: Forças Armadas precisam acertar contas com passado; assassinato do pedreiro carioca sugere urgência de desmilitarizar polícias
Entrevista a Pedro Dallari
Por Thales Schmidt e Vinicius Martins.
No aniversário de 51 anos do golpe civil-militar de 1964, Pedro Dallari, coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), faz um balanço da atuação do grupo; da relação mantida com os militares durante os trabalhos; da memória do último período ditatorial brasileiro e das manifestações de certos grupos pela volta do regime autoritário.
Foram dois anos e sete meses de investigação sobre as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988. O relatório final das atividades levantou a relação de pessoas, instituições e empresas com a ditadura civil-militar. Ao fim das apurações confirmou-se 434 mortos, 1843 torturados e 6016 denúncias de violações aos direitos humanos entre 1964 e 1985. O documento pode ser consultado no site da CNV.
Além de coordenador da Comissão da Verdade, (cujos trabalhos terminaram em dezembro do ano passado), Pedro Dallari é advogado, professor titular e diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Centro Universitário Ibero-Americano da mesma instituição. Atualmente é membro do Conselho Diretor do Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA), órgão integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Verdade para quem?
“O objetivo disso tudo, da Comissão Nacional da Verdade, do seu relatório, é atender aquilo que está na lei que instituiu a comissão, para que a ditadura nunca mais se repita. Que as graves violações de direitos humanos, que foram motivadas pelo simples ato de dissentir, nunca mais ocorram. Que a democracia seja algo realmente incorporado no patrimônio cultural da sociedade brasileira”, afirma Dallari.
Sobre críticas ao trabalho da CNV, o coordenador aponta discordâncias tanto de setores conservadores quanto de progressistas. Além de cobranças por uma postura mais firme em relação à finalidade do grupo, o órgão foi acusado de guardar um caráter revanchista, sobretudo por não investigar crimes cometidos pela oposição ao regime.
“A lei determinou que nós investigássemos as graves violações de direitos humanos que, por definição, são praticadas pelo Estado. Nós não tivemos o mandato para investigar todo o tipo de ação que pudesse ser caracterizada como criminosa. Essa foi uma decisão do Congresso Nacional”, explica Dallari.
De acordo com o ex-coordenador da CNV não havia possibilidade de ir além do que a lei estabelecia. Os atos praticados pelos grupos de oposição já foram investigados e punidos pela ditadura em seu período de vigência.
Dallari aponta a valorização dos fatos no relatório como forma de contornar posições contrárias. “A opção que nós fizemos pra evitar qualquer tipo de situação de critica ao final foi produzir um relatório que fosse basicamente de fatos. Vocês vão folhear o relatório e verão que ele não tem análises, ele não tem narrativas, ele é descritivo”, afirma.
Diálogo com os militares
“A relação [com os militares] foi respeitosa e nós reconhecemos que houve uma relação institucional adequada. (…) Nós fomos muito rigorosos no sentido de ter uma conduta republicana. Isso não quer dizer que nós tenhamos ficado satisfeitos com o engajamento dos militares. Houve uma posição, que eu caracterizei em alguns momentos como autista. Nós apresentávamos dados muito relevantes do engajamento ou da responsabilidade das Forças Armadas nas graves violações de direitos humanos e a reação era o silêncio”, afirma Dallari.
O coordenador da CNV aponta que a falta de acesso a documentos das Forças Armadas dificultou o trabalho do grupo: “eu tenho convicção de que há acervos como o do Centro de Informação do Exército, por exemplo, que estão escondidos em algum lugar”.
Dallari acredita que as Forças Armadas nacionais ainda precisam acertar as contas com o seu passado e reconhecer o seu papel durante o regime de exceção: “é inaceitável que a resposta das Forças Armadas seja essa negativa pífia ao reconhecimento do que houve”.
Segundo o professor da USP, a Igreja Católica poderia servir de inspiração para os militares brasileiros: “A primeira recomendação da CNV não é nem a responsabilidade dos agentes, é que as Forças Armadas reconheçam; não falamos em perdão, não entramos nem pela esfera da dimensão moral, mas trabalhamos com um fato: que elas reconheçam o que houve. Eu tenho dado o exemplo do Papa Fransico. Ele foi colocado diante do problema da pedofilia na Igreja. O que o Papa Franscisco fez? Reconheceu e disse ‘houve, não deveria ter ocorrido, isto não é da doutrina da Igreja, é lamentável e a Igreja não pode compactuar com isso, nós temos que tomar medidas’”.
Em 1979, o ditador e presidente João Batista Figueiredo promulgou a Lei de Anistia. Segundo o texto, foram perdoados todos os crimes políticos e conexos cometidos desde 2 de setembro de 1961 até a promulgação da lei. A medida permitiu a volta para o país de diversos exilados fugidos da repressão, mas também serviu como um auto-perdão para militares acusados de crimes de violação dos direitos humanos.
A anistia brasileira já foi criticada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O órgão indicou que a manutenção da lei contraria a Convenção Americana de Direitos Humanos, pacto assinado pelo Brasil. Apesar da importância do tema, Dallari aponta que a CNV limitou-se a fazer recomendações: “Houve um momento no Estado brasileiro que havia uma política pública de violação de direitos humanos, assim como havia um política de habitação, de transporte, tinha uma política de combate e extermínio dos opositores com o uso desses métodos, de maneira científica, planejada, com técnicas vindas do exterior — ou seja, o que nós poderíamos recomendar? Que essas pessoas sejam responsabilizadas. Não caberia à comissão entrar numa discussão jurídica sobre a eventual impossibilidade disso”.
O coordenador da CNV, contudo, contesta a posição brasileira de não julgar os envolvidos no regime militar: “Realmente será lamentável que o Brasil seja o único país na América Latina que não condenou ninguém. O Chile já fez isso, a Argentina já fez isso, o Uruguai já fez isso, o Paraguai já fez isso, o Peru já fez isso. Na Argentina inclusive o general Videla morreu preso, por idade, por problema de saúde, mas ele estava [judicialmente] condenado. E no Brasil, não há nada. É um convite à impunidade a ideia de que pode se praticar este tipo de ato que nada ocorrerá. Então é muito importante que haja essa ação firme do judiciário”.
Resquícios da ditadura
Os efeitos da ditadura civil-militar na sociedade brasileira podem ser observados ainda hoje. Em janeiro deste ano, a Human Rights Watch (HRW) apontou o uso da tortura como um problema crônico nas instituições de segurança do país. De acordo com relatório da entidade, entre o mês de janeiro de 2012 e junho de 2014, a ouvidoria da entidade recebeu 5431 denúncias de abusos, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes através do Disque Direitos Humanos.
Para Dallari, a Polícia Militar age de forma semelhante ao Exército durante a repressão ditatorial. “É evidente que a tortura praticada pelo regime militar ter ficado impune, acabou sendo um fator de permissividade para que ela se prolongue até hoje. Peguem o caso Amarildo, o caso recente do pedreiro preso no Rio de Janeiro e levado a uma UPP e barbaramente torturado, executado e cujo corpo desapareceu, é o caso Rubens Paiva”, analisa.
Pedro Dallari em palestra de divulgação dos resultados e experiências da CNV na Unesp/Bauru – foto: Felipe Amaral
Julgamento e anistia
Em 1971, durante o regime, Rubens Paiva teve sua casa invadida por militares. O ex-deputado federal foi preso, sem mandato de prisão, torturado em dependências das Forças Armadas e, posteriormente, executado. Seus restos mortais seguem desaparecidos.
Ao considerar a semelhança entre passado e presente, o relatório final da CNV sugere o fim dos autos de resistência, a desmilitarização da Polícia Militar (PM) brasileira e uma reforma no sistema prisional do país.
Os autos de resistência caracterizam casos em que suspeitos são mortos ou feridos pela polícia. A sugestão é de que sejam usadas expressões como “lesão corporal decorrente de intervenção policial”, por exemplo.
A desmilitarização da PM se faz necessária, na visão da CNV, pelo fato de esta policia não ter uma estrutura conciliável com um Estado democrático. Além disso, é incapaz de integrar de maneira completa as polícias brasileiras.
Por fim, recomenda-se uma revisão do sistema prisional do país. Segundo o relatório, é necessário encontrar formas de conter a superlotação dos presídios e as violações constantes aos direitos humanos. Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) feito em junho passado, o Brasil atualmente ocupa a terceira colocação entre as maiores populações carcerárias do mundo. Perde apenas para EUA e China, primeiro e segundo colocados respectivamente.
Os resquícios do regime militar não estão presentes apenas em instituições do Estado. É comum observar homenagens e referências a personagens do período ditatorial em praças, bairros, ruas, avenidas, rodovias, escolas, entre outros. Em São Paulo, por exemplo, pode-se observar o caso da BR-374, também batizada de rodovia Presidente Castello Branco, em referência ao primeiro presidente do regime civil-militar.
A Comissão Nacional da Verdade recomenda que logradouros que levem o nome de antigos agentes do regime sejam revistos. Dallari atenta que deve haver uma discussão cuidadosa antes de qualquer decisão. “Isso está escrito com muito cuidado nas recomendações, essa revisão deve ser discutida com a sociedade. Ela deve ser discutida, e sua eventual mudança produzida, num gesto de resgate da memória e conscientização, não pode ser um gesto pura e simplesmente de imposição, sem que as pessoas nem percebam”, afima.
Manifestações pelo impeachment
“Em que pese haver manifestações em prol da volta dos militares e da ditadura, eu não acho que isso seja um fenômeno generalizado e não associo isso, como regra, às manifestações que estão ocorrendo. As manifestações não têm como eixo essa perspectiva, o que há são grupos que se juntam as manifestações contra o atual governo com essas bandeiras”, pondera o professor universitário.
O coordenador da CNV acredita que as manifestações do último 15 de março contra a presidenta Dilma Rousseff (PT) são legítimas, mas os manifestantes precisam se distanciar daqueles que defendem uma intervenção militar: “O que é preciso é que os que protestam legitimamente contra o atual governo, e que têm vocação democrática, deixem claro e demarquem de maneira mais efetiva do que vem fazendo seu repudio à essas manifestações pela volta das forças armadas. Muitas vezes eu sinto uma certa complacência, uma certa leniência, que não pode haver. Mas, de maneira nenhuma, eu acho que isso é significativo”.
Fonte: Outras Palavras