Na semana passada, a imprensa teve acesso a informações detalhadas contidas no acordo firmado entre a farmacêutica AstraZeneca e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para a produção de uma vacina contra a COVID-19, que revelaram algumas restrições impostas pela companhia britânica à parte brasileira.
Segundo o memorando de entendimento assinado no final de julho, entre outras coisas, a AstraZeneca reserva para si o direito de definir a data de término da pandemia da COVID-19, dado que, durante o período de surto, a empresa se comprometeu a fornecer doses da vacina a preço de custo. O chamado “Período de Pandemia” acabaria em 1º de julho de 2021 e só deverá ser estendido se a farmacêutica assim desejar.
Além disso, o acordo também prevê que pagamentos pela transferência de know-how de produção não serão reembolsáveis, assim como o Brasil não poderá solicitar reembolso no caso de a vacina produzida não dar resultados. Por fim, o documento também proíbe a Fiocruz de exportar o produto, restringindo a sua distribuição apenas ao mercado doméstico.
Administração de Medicamentos e Alimentos dos EUA pretende analisar minuciosamente a segurança da vacina desenvolvida pela AstraZenecahttps://t.co/A5cYn5l3iI
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Para a advogada Angela Tsatlogiannis, especialista em direito internacional e direitos humanos, embora, em um momento de exceção como este, empresas do setor farmacêutico acabem se sobressaindo nas negociações, dada a contribuição fundamental do Brasil para o desenvolvimento da vacina da AstraZeneca, o governo brasileiro deveria ter tentado se impor de maneira mais incisiva nessa negociação.
Em entrevista à Sputnik Brasil, ela diz considerar abusivas as restrições impostas pela companhia britânica, já que o Brasil e outros países, além de auxiliar nas pesquisas, também têm feito investimentos significativos para que a vacina possa ser produzida o mais rápido possível e com a máxima eficácia.
“Eu acredito que a gente não está falando só de cláusulas abusivas no sentido de limitar a produção, estabelecendo prazos. A gente está falando também de um compartilhamento aí de tecnologia, de know-how, onde se cobram royalties por isso, onde o Brasil paga por isso, né? O que, ao meu ver, por parte da AstraZeneca, não é uma parceria efetiva, mas, sim, uma utilização de meios vindos de outras instituições de pesquisa para atingir um fim que, no futuro, só vai trazer benefícios a ela.”
Tsatlogiannis sublinha que vale lembrar que, por se tratar de um vírus mutável e ainda pouco conhecido, existe a possibilidade de vacinas criadas se tornarem obsoletas em pouco tempo.
“Entendo que a indústria farmacêutica pensa nisso, já que ela está se empenhando, já que ela está patrocinando (de uma forma, lógico que compartilhada, mas, talvez, a maior parte esteja saindo dela) a obtenção dessa vacina, que pode ser que não seja utilizada em um médio espaço de tempo”, avalia a advogada. “Nesse sentido, talvez seja essa a intenção da AstraZeneca. O que não justifica, porque nós estamos, de novo, em tempos de pandemia.”
Primeiro de todos: é criado sistema de comparação de vacinas contra pandemiahttps://t.co/tXE3QfeUbT
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No âmbito do direito internacional, a especialista explica que quem recebe a tecnologia, o know-how, tem o direito de explorá-la, dentro dos limites do que foi acordado. Em uma situação comum, a imposição de cláusulas mais “severas” podem ocorrer. Entretanto, no caso específico de uma pandemia, há outras determinações que precisam ser consideradas.
Levando em conta orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tsatlogiannis sugere que o governo brasileiro poderia solicitar, por exemplo, uma suspensão das patentes de medicamentos e vacinas, como outros países já estão fazendo.
“Não só pelos motivos que eu mencionei antes, pela participação efetiva do Brasil e por aí afora. Mas, sim, pela necessidade, pela emergência que se tem no desenvolvimento de medicamentos e de uma vacina que acabe com essa pandemia.”