A tramitação do projeto de lei que pretende legalizar a interrupção voluntária e gratuita da gestação até a 14º semana, na Argentina vem impactando a discussão do tema em outros países da região, entre eles, o Brasil. Se o Senado aprovar a legislação, o país se somará a Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa, onde o aborto legal já é uma realidade. Para a historiadora e cientista da religião Bruna David, co-fundadora do coletivo Feministas, o novo capítulo que a Argentina abriu na semana passada no debate da descriminalização, com a aprovação da Câmara mostra que as pautas ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos devem ser batalhadas a todo tempo.
Em entrevista a Maria Teresa Cruz, no Jornal Brasil Atual, Bruna, que é também escritora, tradutora e produtora de conteúdo editorial, destaca que a pauta só chegou a esse momento devido à articulação e à coragem política de debater a legalização do aborto. “Não é mágica, ‘de repente o presidente eleito acordou e pensou em legalizar o aborto’. É a construção histórica dos movimentos sociais na Argentina”, ressalta.
Na última quinta-feira (10), pela segunda vez em dois anos um mar verde de mulheres voltou a ocupar as principais cidades do país para reivindicar a interrupção voluntária da gravidez. Em 2018, um outro PL pela descriminalização chegou também a ser aprovado na Câmara, mas foi barrado pelo Senado. A pauta, contudo, se tornou uma promessa de campanha do presidente Alberto Fernández. Eleito, o mandatário se comprometeu com os movimentos e enviou o projeto ao Legislativo. Aprovada por 131 votos, a lei passa agora por debates em comissões do Senado. Segundo o jornal Página 12, a previsão é que até 29 de dezembro a legalização do aborto seja votada.
Onda verde da história
A tramitação acompanha os avanços que a Argentina realiza sobre as questões ligadas a gênero. “Quando a gente vê os meios de comunicação, nota-se um cuidado com a linguagem. Há toda uma movimentação de conscientização das pessoas para maior abertura desses temas”, explica. De acordo com a historiadora, esse processo também está associado ao que chama de “consciência política” sobre a própria história do país.
Bruna lembra que a Argentina atua pela preservação de memórias, inclusive críticas a ela, debatendo desde o genocídio praticado contra a população negra até os horrores da ditadura militar (1976-1983). “É exatamente esse tipo de coisa que leva à onda verde”, avalia.
O peso da moral cristã brasileira
Essa preocupação histórica é também o que a difere do vizinho Brasil. “A mentalidade brasileira não tem essa consciência política. Nós temos uma sociedade escravocrata ainda, podemos dizer. Chegamos numa sala de aula e aprendemos que a princesa Isabel foi a salvadora da população negra, todas essas besteiras. E só decoramos a história”, observa.
“Vendo alguns países à nossa volta como Uruguai e Argentina, não há isso. Eles têm a busca pelo pensamento crítico, acho que essa é a grande diferença. E é triste falar que Paulo Freire é brasileiro. O grande cara da educação é brasileiro e temos uma falha muito grande na educação que está permeada por uma moral, que não necessariamente vem da escola, mas da família”, acrescenta.
A historiadora e cientista da religião adverte que a própria discussão sobre o aborto está impregnada por um tipo de discurso moral, muito pautado no cristianismo, que já na década em 1960, com o regime militar brasileiro, avançou como uma forma de controle do corpo das mulheres e dos grupos LGBTQUIA+, com apoio também da mídia tradicional. É essa aliança, segundo ela, que é responsável pela disseminação de discursos que vão chamar a luta pelo aborto de “assassinato de bebês”. Um ataque reproduzido por figuras como a extremista Sara Winter e, recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que o utilizou para criticar a Argentina.
Militância é pelo direito de escolher
“Ninguém está aqui militando para que a mulher faça o procedimento, a militância é para que as mulheres tenham o direito de escolher ou não. Porque quem mais morre em decorrência da criminalização do aborto são mulheres negras e pobres. O que estamos querendo é conter os danos. Somos uma sociedade que aborta. Queremos controlar que ninguém morra”, ressalta. “Estamos militando pela liberdade das mulheres, homens trans, todas as pessoas que querem abortar, não só quando sofrem uma violência, quando estão com risco de vida ou o feto está em risco. É para que as pessoas tenham essa escolha e não tenham risco, que seja um assunto de saúde pública, não um assunto criminal.”
A historiadora lembra, no entanto, que apesar do peso do discurso conservador no Brasil, “há resistência” por parte de movimentos feministas que pautam o debate. Ao El País, a deputada da Câmara Nacional no México pelo partido Movimento Cidadão, Martha Tagle, também destacou que a decisão na Argentina pode impactar positivamente a “maré verde” pelo sul. Mas advertiu que, além do engajamento dos movimentos, é preciso apoio também da classe política.
“O problema é que muitos continuam acreditando que falar do aborto significará um custo político alto e que vivemos em um país muito conservador. Mas o que a Argentina nos demonstrou hoje é o contrário, falar dos direitos das mulheres na região faz muito sentido. O movimento feminista demonstrou que há uma geração de mulheres jovens conscientes de seus direitos e que não estão dispostas a renunciar”, frisou a deputada.