Por Désceo Machado, para Desacato.info.
Os homens, antes de qualquer juízo acerca do aborto, deveriam refletir, se organizar e romper com a prática masculina de abandono de centenas de milhares crianças.
Ser homem é estar em uma posição e condição de poder. O discurso universalista, que pretende igualar homens e mulheres, é ele próprio um discurso masculino, maquiador das diferenças e desigualdades. A encarnação de uma racionalidade acima das desigualdades e diferenças costuma servir para reafirmar e fortalecer a posição masculina. Não é o caso de os homens se absterem ou não se posicionarem no debate sobre o aborto, mas respeitarem a vontade e a voz das mulheres organizadas.
Antes, porém, de enunciar as determinações morais aos pais que deixam os filhos e filhas desamparados material e afetivamente, antes de exigir providências estatais para recompor e impor a presença masculina no cuidado com as crianças, gostaria de tocar em cinco nós do discurso masculino sobre os filhos.
- Os filhos são da mulher, se a mulher não quer estar mais com o homem, que leve os filhos juntos.
No universo de poder masculino, o homem é dono da fêmea e a fêmea é a natural cuidadora de sua cria. Para que o homem ofereça o prêmio de cuidar dos filhos é necessário a mulher fazer por merecer, o que significa cumprir com os ideais masculinos de uma boa esposa.
- Criar os filhos é coisa para mulheres.
Os homens não tem jeito com as crianças, não sabem cuidar, limpar e alimentar. É temerário deixar crianças pequenas com homens. A natureza deu à mulher a condição de gestar, parir e cuidar.
- Se o home saiu de casa e os filhos ficaram desamparados, foi porque a mulher escolheu mal o pai.
A fêmea escolhe um reprodutor, e ela deve ser responsável pela escolha.
- O homem não pode amparar os filhos do antigo casamento, porque cuida dos filhos do novo casamento.
O cuidado com os filhos é de responsabilidade do atual companheiro. Se a mulher não arranja quem cuide dos seus filhos, o problema é dela.
- O homem não tem culpa de fazer parte de uma cultura machista, ele é tão vítima quanto á mulher das determinações de poder que, inclusive, sua mãe lhe impôs.
Toda a ideologia e relações de poder de que o homem participa é resultado de uma cadeia histórica de determinações socioculturais, com a qual ele não tem o poder de romper.
Essas cinco frases, que expressam a posição de poder dos homens na família e atuam como justificativas do desamparo das crianças, evitam que os homens se confrontem com sua própria condição. Há gozo e prazer em fruir da irresponsabilidade de não cuidar dos seus filhos, mas há recusa de conviver com as crianças, recusa de se confrontar e se espelhar nesses seres, recusa de resgates no espelhamento sua própria infância. Há cegueira de identificar espaços de poder e empoderamento nas relações com as crianças e mesmo nas relações domésticas. O homem não se reconhece como agente criador no campo doméstico, rejeita esse ambiente de poder.
As cinco frases, de um certo modo, colocam a mulher como centro de gravidade da família, como a fonte do afeto e das escolhas, restando ao homem a posição passiva, de alvo do encantamento feminino ou de vítima das determinações culturais e da natureza. A fragilidade dos laços de paternidade, sempre a depender da intermediação materna e a fácil desvinculação do pai é o resultado da cultura narcísica masculina de evitar o vínculo para não ser abandonado. O medo do abandono impõe a precaução de não criar laços. Essa é condição confortável e passiva do homem no mundo, revivendo aquele momento inaugural de sua existência, condição, que sabemos, impõe na vida adulta sofrimento real a crianças e mulheres.
Se os homens pudessem decidir abortar, se fruíssem do poder de ir ao fundo e arrancar-se, confrontando o desejo passado com o desejo futuro, arrancariam de dentro de si, aos pedaços em sangue, os ideais irrealizáveis da sociedade patriarcal, sobrando menos homem e mais ser humano.
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