A vilania narcísica no esgoto bolsonarista. Por Marco Vasques.

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

Em uma de suas canções mais conhecidas, Caetano Veloso larga este verso: “É que narciso acha feio o que não é espelho”. Pois bem, muitos de nós sabemos do mito de Narciso. Há variações sobre o tema, contudo, o que corre na boca do povão que estuda mitologia é que ele era tão bonito e vaidoso, que, ao topar com sua própria imagem refletida num lago, acaba se apaixonando por si mesmo, e, como era de se esperar, morre de inanição às margens da lagoa, pois não suportava a ideia de se afastar da imagem que tanto amava.

Os gregos, que já adaptaram a lenda de outras culturas, impuseram a versão mais conhecida de Narciso e, de lá para cá, a narrativa vem recebendo novas interpretações, roupagens e inúmeras variações.

Não é preciso ser nenhum doutor em psicologia, sociologia ou psiquiatria para buscar um entendimento de como funciona o cérebro de um bolsonarista, pois, continuar defendendo e idolatrando o coiso só pode ser atribuído a um movimento psíquico associado à semelhança, ou seja, trocando em miúdos: um bolsonarista não aceita nenhuma crítica ao seu ídolo, por mais fundamentada e documentada que seja, porque ele se vê à imagem e semelhança do ser que tanto enaltece e admira.

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Não é possível compreender como nossos vizinhos, amigos, parentes e conhecidos colocaram no posto máximo da Nação um homem que, em plena campanha, elogiou torturadores; defendeu a intervenção militar; condecorou bandidos e milicianos; achincalhou as mulheres; proferiu discurso de ódio e incitou a violência contra a comunidade LGBTQIA+; maculou a imagem do ensino público; chamou estudantes e professores das universidades públicas, um dos projetos educacionais mais bem-sucedidos do país, de vagabundos e maconheiros; prometeu a liberação quase que irrestrita da posse de armas; implantou no senso comum a ideia de que quem produz arte no país não merece respeito algum; destratou jornalistas com os xingamentos mais grotescos e grosseiros; produziu centenas de notícias falsas; ausentou-se dos debates durante a companha, enfim, a lista de absurdos é imensa, mas foi essa figura que deveria causar espanto e ojeriza que angariou a empatia de um parcela muito significativa da nossa população.

E quando, finalmente, empossado de poder, vem trabalhando com sucesso para acabar com conquistas caras à Nação. Todo o horror anunciado durante a campanha, em alguma medida, foi executado. É preciso dizer que estamos atravessando uma pandemia que ainda não findou. Hoje, nos Estados Unidos, os mortos ultrapassam a casa de duas mil pessoas por dia. Estamos, aqui no Brasil, alcançando a triste realidade de morrer quase mil pessoas por dia. E o que o boçal arrotador de farofa faz? Debocha da vacina, não usa máscara, aglomera e vocifera contra a ciência.

É aterrador o que nos acomete. O Ministério da Cultura foi extinto, as verbas para áreas como educação e saúde vêm sendo cortadas a cada anúncio de novo orçamento. A Polícia Federal, organização que trabalhou livremente em outros governos, agora está sendo supervisionada para que não investigue as mutretas e as tramoias de um governo mergulhado na miséria humana. Por falar em miséria, a fome está se alastrando país afora. A insegurança alimentar grassa solta. A inflação nas alturas. A gasolina atrelada ao dólar e ao mercado internacional está devastando nossos cotidianos. Os funcionários públicos vêm sofrendo ataques gratuitos. O Sistema Único de Saúde, que é uma referência em saúde pública em todo o planeta, sofre duros golpes. Em setembro do ano passado, o inominável foi às ruas bradar pela intervenção militar, pelo fechamento do Supremo Tribunal de Justiça e pela volta do voto impresso.

Chega a ser extenuante escrever e apontar tantos descalabros. Mais que isso, chega a ser desesperador perceber que nossos familiares, nossos vizinhos e parte de nossa comunidade reage com violência quando, em uma discussão, tentamos argumentar e mostrar a face fúnebre deitada no leito de um governo opressor, genocida, racista e fascista ao extremo. O próprio coiso disse, em uma de suas entrevistas, que se alistaria ao partido de Hitler. Tudo que está exposto nesse texto não traz novidade nenhuma, pois se as redes sociais têm sido ferramenta fundamental para espalhar notícias falsas, elas também servem para se fazer pesquisas que mostrem a verdade. É só perder a preguiça e pesquisar. Mas eles, os asseclas do estrume, odeiam pesquisa e pesquisadores.

E a verdade que precisamos encarar é que nossos parentes, amigos e vizinhos que continuam na saga insana de defender o fedor que exala do esgoto bolsonarista são iguais e até piores que o monstro de coração necrosado. Essas pessoas não estão mais agindo por pura ignorância ou burrice, não! Elas se reconhecem nessa vilania, nesse clima de morte.

Por isso são iguais ou piores que a imagem que cultuam, porque são vis, assassinos, genocidas, racistas e fascistas. É duro admitir que o nosso tio bonachão é um fascista escroto; que o nosso irmão, com quem trocamos afetos tão profundos, é um genocida confesso. Infelizmente, não estamos mais no elogio da ignorância, mas no âmbito da mortificação da vida em comunidade. Tal qual Narciso, toda essa gente que idolatra o genocida, por mais paradoxal que possa parecer, encontra nele e em suas atrocidades a imagem de suas paixões.

O problema é que Narciso, ao se apaixonar por sua própria imagem, feneceu sozinho; já as pessoas que nos circundam e que estão enlouquecidas de paixão pela imagem do horror estão com os olhos e as mãos encardidas de sangue alheio. São tão assassinos e genocidas quanto o estrume que nos governa.

 

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

 

 

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