A vida à deriva do precariado

Os Operários, 1933, Tarsila do Amaral.

Por Evânia Reich.

“O trabalho, no frigorífico, torna-se algo instrumental e o sujeito é descartado assim que perde a produtividade”, relata ao jornal do PCB de Santa Catarina o psicólogo social Leandro Inácio Walter. Em sua pesquisa com os trabalhadores afastados de um frigorífico do Rio Grande do Sul, ele colhe relatos de sofrimento psíquico causados por uma sirene que era acionada para avisar que algo tinha dado errado no trabalho de cortes dos animais.

“Muitos ficavam agitados só de ouvir qualquer barulho que se assemelhasse a uma sirene, mesmo fora do ambiente de trabalho. Qualquer barulho semelhante trazia essa lembrança do horror das situações que eram vivenciadas no local”.

Este é um exemplo típico de trabalhadores que vivem em situação de extrema precariedade, a qual causa enorme sofrimento físico e psíquico.

Hoje encontram-se na precariedade todos aqueles indivíduos ligados ao mundo do subemprego. Como diz o sociólogo brasileiro Ruy Braga, o precariado é composto por aquele setor da classe trabalhadora permanentemente pressionado pela intensificação da exploração econômica e pela ameaça da exclusão social. São trabalhadores, que por não possuírem boas e especiais qualificações, entram e saem muito rapidamente do mercado de trabalho. No Brasil deveríamos acrescentar os trabalhadores jovens à procura do primeiro emprego, os quais são desqualificados ou semiqualificados, sub-remunerados e inseridos em condições degradantes de trabalho. Assim como, em geral, os muitos indivíduos que estão na informalidade e desejam alcançar o emprego formal.

Para o sociólogo americano Guy Standing, autor do livro “O Precariado: a nova classe perigosa”, o mundo do precariado está intimamente ligado ao subemprego, mas também implica a falta de uma identidade segura baseada no trabalho. O trabalhador não se vê identificado com seu trabalho porque, muitas vezes, apesar de possuir um nível relativamente alto de educação formal, foi obrigado a aceitar um emprego com um rendimento baixo. É aquele trabalhador que ocupa empregos desprovidos de carreira e sem tradições de memória social. Por isso esses trabalhadores não possuem uma dimensão do futuro. Ao contrário, estão sempre ligados ao presente, e seu futuro é sempre incerto. Sem uma identidade segura, sem um sentimento de pertença e de desenvolvimento alcançado por meio do trabalho, o presente é algo que não consegue ser costurado com uma perspectiva de futuro. O indivíduo no precariado vive uma experiência constante de insegurança porque nada lhe garante que o seu “ganha-pão” de hoje será o mesmo de amanhã, ou mesmo que ele terá um “ganha-pão” no dia seguinte.

O que é mais drástico é que uma quantidade relevante dos assalariados está sendo levada ao precariado. Grande parte deste processo de precarização no trabalho deve-se às mudanças nas leis trabalhistas, as quais têm sido pensadas para flexibilizar a mobilização da força de trabalho, diante das exigências do mercado.  A era da globalização (1975-2008) provocou uma desintegração entre a economia e a sociedade, criada pelos grupos financeiros e economistas neoliberais os quais buscaram criar uma economia de mercado global baseada na competitividade e no individualismo. Competitividade significou um aumento cada vez maior de produtos competitivos no mercado global, o que acarretou o início desta era de práticas de empregos flexíveis e de baixo custo.

Por que tudo isso é tão preocupante?

Primeiramente sob o ponto de vista individual, esses trabalhadores vivem uma enorme insegurança que aumenta em proporção com a idade. Quando se é jovem aceita-se melhor o mundo do subemprego. Espera-se que este seja apenas o primeiro momento, mas que a vida possa lhes proporcionar algo melhor no futuro. O grande problema é que a precariedade vai se estendendo com o tempo e a luz no fundo do poço vai se apagando, aquela insegurança inicial se torna uma verdadeira angústia e causa um enorme sofrimento. O indivíduo sente raiva e frustração. Raiva pela sua privação material e frustração diante dos bloqueios que lhe impedem a realização de uma vida significativa. Uma frustação que é causada pela sua impossibilidade de obter um trabalho que lhe dê segurança, bem como que lhe envolva em uma relação de confiança. O trabalhador percebe sua situação como sendo injusta, e não somente como sendo ruim do ponto de vista econômico. No entanto, ele possui uma dificuldade em articular suas reinvindicações em termos de justiça, principalmente porque o próprio sistema econômico faz com que o trabalhador no precariado acredite que ele não sofre nenhuma injustiça. Se há insegurança no trabalho é porque não tem emprego para todos, porque estamos vivendo uma crise econômica. No entanto, sabe-se que as empresas seguem lucrando.

O trabalhador precário vive em constante ansiedade, a qual está ligada às incertezas da sua vida. A insegurança crônica é promovida pela oscilação entre ter e não ter um trabalho. Algumas vezes ter condições de pagar as suas despesas mais elementares e outras não as ter. Possuir uma moradia, mas estar sujeito a se tornar um sem-teto. Todas essas incertezas provocam uma ansiedade que lhe causa sofrimento e mal-estar permanente.

Por último, este trabalhador sofre de alienação. A alienação está relacionada com a falsa valorização que lhe é exigida. É dito a eles que o fato de possuírem trabalho já é uma posição privilegiada. É aquele discurso: “você tem sorte de ter um trabalho”. Disto decorre uma exigência de gratidão que o próprio indivíduo no precariado não consegue sentir. Há uma exigência de realização pessoal que é incompatível com os salários recebidos. Os salários baixos impedem que os trabalhadores tenham momentos de lazer para compensar a frustração no trabalho. A capacidade e a possibilidade de encontrar a autoestima no precariado é quase vã, seja porque o seu trabalho consome todo o seu tempo, seja porque o seu salário não lhe permite o investimento pessoal em outros ramos da vida. A ressignificação da vida em outros âmbitos é aniquilada pela sua própria condição de precariado.

Sobre o ponto de vista coletivo e social, a grande preocupação reside no fato que, apesar do número cada vez maior de indivíduos assalariados vivendo na condição de precariado, não existe uma classe do precariado, como existia no passado uma classe do proletariado. O precariado ainda não se mostra uma classe organizada que busca seus interesses, porque eles mesmos não sabem quais são seus objetivos comuns. Como suas vidas laborais estão ligadas apenas ao presente, sem uma oportunidade de um progresso pessoal e a construção de uma carreira, os indivíduos não possuem a capacidade de pensar a longo prazo em torno de um objetivo próprio, tampouco comum. Isso é muito preocupante porque a falta de um objetivo comum tem como consequência o surgimento de uma classe fragmentada. Indivíduos que só pensam em seus próprios interesses, e não em um bem comum. Indivíduos que ficam fragilizados e possuem uma enorme receptividade a qualquer discurso, mesmo que este vá contra a sua própria condição material.

Esses indivíduos desprovidos de objetivos comuns, revoltosos com suas condições no trabalho e na vida, estão se tornando uma nova classe perigosa, pois são propensos a ouvir discursos desagradáveis, extremistas e a investir seu dinheiro e tempo na plataforma política dessas novas vozes cada vez mais influentes. Para o sociólogo Guy Standing, não há dúvida que o verdadeiro sucesso da agenda neoliberal, aceita em maior ou menor grau por todos os tipos de governos, é ter criado um monstro político incipiente.

Infelizmente a história política atual vem comprovando essa triste realidade. As últimas eleições nos Estados Unidos mostraram que um enorme número de cidadãos advindos da classe do precariado votou para um neoliberal milionário que não tinha nenhum plano de governo para ajudar essa classe. Na França, nas últimas eleições, a extrema direita quase ganhou com uma boa parcela dos votos do precariado. E no Brasil? Aguardaremos o resultado das urnas para comprovar sociologicamente o que as redes sociais parecem apontar.

Mais do que nunca se faz necessário a inserção do precariado em movimentos sociais que os tornam unidos em torno de um bem comum. Por enquanto essa união é barrada pelo próprio projeto e sistema neoliberal que possui todo interesse em alimentar o crescimento desta camada da população trabalhadora. Interesse econômico e político. Quando nos deparamos com uma proposta de um candidato à presidência (Jair Bolsonaro) que afirma a retirada de direitos trabalhistas, como por exemplo o 13º salário ou a criação de um dispositivo legal que facultaria ao trabalhador a escolha de uma nova carteira de trabalho cujo o contrato teria mais valor do que as regras da CLT, sabemos muito bem o que está por trás destas ideias. Que no fundo, o trabalhador não escolherá nada. Que o patrão imporá a carteira de trabalho que melhor lhe convier, ou seja, aquela que não obedecerá às regras da CLT.  Faz-se necessário lutar contra isso. É impreterível que o trabalhador precariado se conscientize que estando do lado errado ele permanecerá nesta categoria humana para quem a política reserva uma morte precoce.

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

 

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