Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
“Os livros, assim como os cadernos servem pra confeccionar grandes e pesadas bolas para o jogo de queimada. A sirene que limita os horários é a mesma usada na febem (digo FEBEM de propósito), a melhor hora é a da comida. Alguns já lhe confessaram que vão pra escola pra comer. Eles se sentam no chão, porque as mesas estão ocupadas com os jogadores de truco. Outros nem se importam em dividir o espaço com enormes sacos de lixo sanitário e ali comem o que o Alckmin “dá”. São temerosíssimos a Deus, totalmente contra o aborto, sobre a pena de morte… São fascinados pelo Bolsonaro.
Outro dia observei a trajetória da professora eventual, não pelas câmeras, mas me debrucei na sua passagem pelo corredor até a escada limitada por pesado portão. Segue ela, tentando botar em prática aquele livro da Alba Zaluar, isso eu que seduzi pelo jeito que caminhava entre decidida e cansada em sua segunda semana no estado. Ela se senta, logo lhe rodeiam alguns alunos, os que não aceitam os limites das salas. Vem um e lhe entrega um barquinho de papel e diz que aprendera a fazer naquela manhã. Ela pergunta se ele aprendeu bem aprendido. Ele diz que sim. Ela pergunta se pode desmanchar uma parte dele pra transformar numa caixa. Ele diz que sim. Transformado o barco em caixa, ela vê ali um pouco de inocência.
Pergunta-lhes se querem aprender a fazer uma canoa. Eles aceitam a proposta infantil daquela pessoa que tem a idade de suas avós.
Feita a canoa, um deles que antes falava em comprar uma arma, alisa a dobradura e sorri uma linha. Diz que nunca vira coisa tão linda.
Aquele dia ela captou seu único momento de beleza. As câmeras registraram a professora saindo da escola olhando o céu que se estala azul e pacífico em detrimento de toda a miséria.
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Imagem: Captura de tela do Youtube.
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Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP