Por Afonso Machado.
Rio de Janeiro, 1904.
O ambiente burguês:
Numa sofisticada confeitaria do centro da cidade, uma rica madame tossia em francês. Quindim, chá, bolo, limonada e lascivos olhares em corpos bem comportados. Cercados pela eclética arquitetura europeia, os ricos cariocas enfeitavam a si e enfeitavam a cidade. Existia um chiquérrimo impulso cultural para a criação de uma Paris tropical á beira mar. As mesas da confeitaria estavam lotadas. Colocando discretamente a xicara sobre o pires e erguendo o pulso relaxado, Dona Gertrudes dirigia-se ao genro:
– É uma questão de Progresso, não acha Senhor Godofredo? Foi preciso remover toda a imundice: os cortiços, os rituais profanos, a conduta obscena e todos aqueles batuques de negros… Eu nunca vi e nem ouvi(graças a Deus !), mas soube através de uma autoridade respeitável, que esse povinho costuma requebrar o quadril (Deus que me livre!) ao som de uma música selvagem e demoníaca. O que o Senhor acha?
PAUSA 1. Antes de lermos a resposta do Senhor Godofredo, vejamos o drama proletário da época:
Reformas urbanas… O cartão postal da elite carioca foi impresso com a brutalidade de tropas que expulsavam os trabalhadores de suas casas. A então capital da República mobilizou o braço armado do Estado para construir jardins e belas passagens artificiais. Vidas eram demolidas, cortiços esmagados e aqueles que não obedeciam eram surrados. Em depoimento dado anos mais tarde ,Dona Benedita, que tinha apenas 7 anos em 1904, se lembra do dia em que sua família foi expulsa de casa:
“ Lembro que foi um sofrimento danado. Os soldados entrava e mandava nóis sair. Minha mãe num queria ir. Um soldado arrastou ela pelos cabelo. Meu pai e meu avô foram empurrar o soldado mas, aí, veio outro soldado e atirou neles dois “ .
Fim da PAUSA 1(de volta ao ambiente burguês)
Godofredo, um importante industrial, tomava seu chá da tarde junto com a esposa e a família. Ele, que não tirava os olhos do decote do vestido da irmã mais nova de sua esposa, empostava a voz para uma longa resposta às observações moralistas feitas pela sogra, Dona Gertrudes:
– Sim, sim: de fato, a sem vergonhice não pode ser tolerada neste cadinho das Américas que(por que não?) podemos chamar de “ Nova Paris “. Mas se a senhora me permite dizer, me preocupam mais as doenças do que as anomalias musicais. Explico: a peste bubônica, a malária e a varíola são realidades que atrapalham os negócios. E isso ainda não foi solucionado; aliás, está se agravando a cada dia que passa. As senhora não imagina a má fama que a nossa Capital tem no exterior! Alguma coisa precisa ser feita e rápido, antes que a economia seja arruinada.
Numa mesa á frente daquela em que a sofisticada família de Dona Gertrudes estava, dois ricos comerciantes conversavam. Um deles comentava indignado:
– Pro inferno com essas doenças! Não vou fechar as portas da minha loja por conta dessa gentalha infectada. Preciso ganhar dinheiro e não tenho medo de doença! Tenho ao meu lado Deus e o governo. Esse povinho que ferva de febre! Ah, coitadinhos: não tem água, não tem sabão? Pois que trabalhem e comprem, assim como eu trabalho!
PAUSA 2( de volta ao lado proletário)
No Brasil do presidente Rodrigues Alves, a modernização coexistia com uma grande quantidade de ratos e doenças. Em outubro de 1904 foi aprovada uma lei que tornava a vacinação contra a varíola obrigatória. A truculência dos agentes de saúde e dos policiais foi uma marca registrada do período: a agulha da vacina era manejada como espada contra uma população que há tempos estava ferida pela violência do Estado, pela exploração dos frequentadores das exuberantes confeitarias. Em outro depoimento feito posteriormente, um operário chamado Raimundo, que era adolescente no começo do século passado, se lembra da brutalidade das autoridades:
“ Gente do governo mandava as mulheres mostrar o ombro para aplicar a vacina: os desgraçados riam, debochavam, bolinavam as moças. O nosso sangue subia de raiva! Além de passar fome e ser chutado para o Morro, tínhamos que aguentar mais esse desaforo! “
Fim da PAUSA 2
Dona Gertrudes exclamava de sua mesa:
– Estão fechando as portas da confeitaria! O que está acontecendo?!
Um garçom respondeu:
– É uma rebelião minha senhora ! O povo tá soltando fogo pelas ventas!
A REVOLTA:
Ruas e avenidas frequentadas pela classe dominante são tomadas pelo povo. Barricadas são erguidas. O cartão postal é posto em chamas com direito a bondinhos derrubados e edifícios danificados. Violeiros transformavam as violas em armas, jovens trabalhadores faziam das pedras das calçadas seus instrumentos de expressão, trabalhadores e trabalhadoras se armavam com porretes. Pernas corriam velozmente de um lado para o outro. Um som predominava: era o grito de mulheres sendo surradas pelas tropas. Uma criança foi pisoteada pela bota de um soldado.
Tudo isso devido ás questões sanitárias? Não, as massas explodiam como o vapor liberado de uma caldeira: anos de privação, exploração e frustração tiveram como gota d´ água a estupidez das autoridades que não estavam realmente interessadas na saúde do povo. As medidas de saneamento eram parte da estética do cartão postal, eram parte dos interesses econômicos de industriais e ricos comerciantes. A população pobre, desinformada e sem acesso ao conhecimento científico, desconhecia a gravidade das doenças, que de fato deviam ser erradicadas através de medidas sanitárias. Porém, esta mesma população conhecia bem a opressão, a humilhação e a fome.
Ciência Médica: o conhecimento necessário para combater doenças.
Ciência Histórica: o conhecimento necessário para explicar e denunciar as desigualdades nas sociedades de classes.
Ciência Médica + Ciência Histórica = conhecimentos que interessam ao proletariado.
O abismo entre as classes sociais assumiu em 1904 diferentes formas, definiu os personagens e os objetos de cena:
Confeitarias X Cultura das ruas
Fraques e cartolas X Homens do povo
Chazinho da tarde X Cachaça da madrugada
Música clássica X Canções populares
Bocejos vespertinos e barrigas cheias X Trabalhadores exaustos e famintos
Dona Gertrudes X A menina Benedita
O industrial Godofredo X O jovem proletário Raimundo
Ricos comerciantes X Famílias pobres e expostas ás piores doenças e privações
Os violentos combates na cidade do Rio de Janeiro terminaram com a repressão policial e do Exército. Mais de 30 mortos e cerca de 110 feridos. Finda a revolta, Dona Gertrudes não deixou de ir até a confeitaria saborear uma gigantesca fatia de bolo.
Observação: Esta é uma pequena obra de ficção. Apesar de tratar de um evento histórico, personagens e certas situações foram inventados.