A tortura em São Pedro de Alcântara: a voz de um ex-detento

    Por Elson Porto.

    Seu João acorda cedo, às 05h15min da manhã, e já está descendo o morro em direção ao ponto de ônibus. Aos 65 anos com aparência de 70 anos ou mais, devido à vida difícil, seu João trabalha sem parar desde menino.

    Tudo que possui na vida é um barraco no morro, caindo aos pedaços, e a família. A última é grande, oito filhos, todos ainda em casa e três netos que ele e a esposa ajudam a criar. É um mundo de bocas para sustentar com seu salário cada vez mais insuficiente.

    Seu João chega ao ponto de ônibus, o mesmo está sempre lotado e as passagens caríssimas. Durante a viagem – sim, viagem, pois qualquer deslocamento no trânsito infernal e nos coletivos apinhados se transforma literalmente em uma viagem – Seu João, que conhece a maioria dos outros passageiros segue ouvindo seu radinho de pilha e as conversas e comentários ao redor.

    O assunto do momento não é mais o inevitável rebaixamento do Figueirense nem a campanha mais ou menos do Avaí na Série B. O tema das conversas agora é mais pesado: ônibus queimados, bases da PM atacadas, denúncias de tortura em São Pedro de Alcântara e protestos de familiares exigindo apuração das denúncias. Seu João ouve as opiniões e faz coro à maioria dos trabalhadores acotovelados no coletivo:

    – Esses bandidos tem mesmo é que morrer! E os direitos humanos das vítimas que ninguém defende?!

    Meu nome é Elson Porto e de tudo que vi, li, ouvi e participei, o que pude perceber durante os dias caóticos em que o Estado de Santa Catarina deparou-se com sua maior crise na segurança pública, o mais marcante foi a opinião de milhares de Seus Joãos e Donas Marias, bem como de quase toda população do estado. É essa opinião que invalida as denúncias de tortura, afinal as vítimas foram os presos que são nada mais que o lixo da sociedade.

    Como membro da Associação dos Amigos e Familiares das Pessoas em Privação de Liberdade e residente nas imediações da Penitenciária São Pedro de Alcântara, vivi intensamente esses acontecimentos e registrei na memória os fatos mais marcantes de todo o desenrolar da crise:

    – Os esforços constantes, a coragem, empenho e lealdade dos membros da Frente Antiprisional das Brigadas Populares, que nos ensinaram a agir em conjunto, a nos reunir, discutir os problemas, ter pautas em comum de reivindicações e que estiveram conosco nos piores e nos melhores momentos da luta.

    – A força das esposas e mães dos detentos que fizeram dias e noites initerruptas de vigília, portaram faixas, acenderam velas, gritaram palavras de ordem, suportaram as críticas e adversidades, não tiveram medo nem vergonha de lutar por seus maridos e filhos. Mostrando a força que o povo adquiriu quando se uniu pra lutar por seus direitos.

    – A frustração quando a primeira inspeção foi feita na penitenciária, a qual após ouvir 7 ou 8 de um universo de mais de 1200 detentos “concluiu” que as denúncias de tortura eram infundadas.

    – A explosão de emoções contraditórias quando após denúncias da ouvidoria nacional dos direitos humanos, uma força tarefa do Tribunal de Justiça foi formada para uma segunda inspeção e levou 69 detentos a exame de corpo de delito, por terem sido covardemente baleados com tiros de borracha, dentro de suas celas, de uma forma que faz Abu Graihb parecer apenas bullying.

    – As notícias dos ônibus e carros queimados, das bases da PM atacadas, bem no momento em que havíamos conseguido, com a mobilização das famílias, das Brigadas Populares e demais pessoas que se uniram a luta, fazer com que os órgãos públicos dessem atenção aos nossos processos e denúncias.

    – A revolta quando nosso movimento pacífico de mobilização, que busca de forma legítima o cumprimento da lei, no que se refere aos direitos dos detentos e familiares, foi acusado de ter participação nos atentados ocorridos. Mentiras, calúnias, tentativas de prejudicar o movimento, de justificar o injustificável, de legitimar a tortura e criminalizar a luta pelos direitos humanos e pelo cumprimento, por parte do estado, da lei de execuções penais.

    – A hipocrisia da mídia em geral, que observava uma coisa e noticiava outra, servindo, como sempre serve, aos interesses dos poderosos.

    – As vitórias conquistadas, fortalecimento da Associação de Amigos e Familiares, forjada na luta; adesão à causa de pessoas que nem conhecíamos, o trabalho digno e exemplar do ouvidor nacional dos direitos humanos, da ouvidoria do departamento penitenciário nacional, do Juiz Dr. Alexandre Takashima e sua valorosa equipe, os quais puderam comprovar as torturas e maus-tratos e a política de opressão e exclusão total inflingida aos detentos.

    – A dor, angústia e sofrimento das esposas e mães a espera ansiosa por notícias, informações, as noites e dias de vigília, os momentos de desespero, de medo, de descontração, de superação e esperança, a decepção com a primeira vitória, a vibração com a segunda, que comprovou que as denúncias eram verídicas e as barbaridades cometidas eram maiores do que supúnhamos.

    Porém nada é tão marcante quanto a opinião do nosso amigo Seu João ,marcante ,por representar a visão da grande maioria da população. Uma concepção distorcida, conveniente aos donos do poder e aos tubarões da mídia, que repetem insistentemente em seus programas de rádio e TV, em seus jornais e revistas os seus mantras prediletos: Pena de morte, prisão perpétua, redução da maioridade penal, opressão e castigos extremos aos apenados, exclusão total e demonização dos seres humanos, em geral pobres, da periferia, viciados em drogas e nunca assistidos pelo estado, que só aparece como força repressora e mantenedora de uma ordem injusta e discriminatória.

    Inacreditável que pessoas como o Seu João não percebam que esse ódio não é contra os presos e familiares apenas, é contra os pobres em geral. Que servem, ou não, de mão de obra barata ou são condenados aos maiores desmandos e arbitrariedades. Exemplos: os sem-teto, os sem terra, os funcionários da educação e da saúde, tratados como bandidos até pela população quando buscam o direito legítimo e melhores condições de vida e trabalho.

    Seu João tem medo, mora na favela, convive com o crime na sua porta e sabe que um de seus filhos ou netos pode ser o próximo a ir pra prisão. Sabe também que muitos daqueles que ele afirma que não merecem atenção dos direitos humanos virão um dia para a rua, residirão próximo ao seu barraco e estarão cheios de ódio e revolta, não só contra o estado, mas também contra a sociedade em geral, que deseja sua morte ou aniquilação. O medo de Seu João é o de muitos que sem opinião própria partilham de idéias deformadas de opinião, os urubus que vivem das desgraças e tragédias e bradam insistentemente seus bordões facistas e discriminatórios. Seu João nunca parou pra pensar, não foi criado pra isso. Quem pensa por ele e o faz crer que o pensamento é seu é a mídia e os governos, que só admitem o pobre calado e escravizado. E paradoxalmente Seu João faz, sem saber, o discurso dos poderosos, e avaliza com sua ignorância as formas mais ignominiosas de abuso de poder, de tortura de pessoas iguais a ele, pobres, semianalfabetos, sem lenço e sem documento.

             Pobre Seu João, levado a fazer o discurso de quem o abomina e o transforma em repetidor do ranço autoritário ditatorial de governo que só se impõe pela força bruta e é incapaz de admitir o óbvio: que gasta milhões para fazer jovens pobres e sem oportunidades saírem das prisões, ainda mais pobres e sem chances, porém carregados de revolta e ódio. O que é um crime contra a sociedade, contra a humanidade, e contra o bom senso. Pois mesmo que não fosse por algum resquício de humanidade e justiça e sim por questões econômicas, já passou da hora de admitir que o sistema prisional é totalmente ineficaz e não consegue realizar aquilo que seria sua função – exercer a tutela sobre os detentos dando-lhes condições mínimas de retornar à vida em sociedade com chances de sucesso. Mas ao invés disso o índice de reincidência é enorme, e as penas da prisões de tornarm perpétuas, pois uma vez detento, sempre discriminado e excluído.

    Acorda Seu João! Abra a mente, os olhos e os ouvidos! E você, amigo, que não é como Seu João, que pensa que tem e forma opinião, e que é contra a tortura e a favor dos direitos humanos, só em tese, mas que não faz nada e que se omite e vê os ideais reacionários e denúncias brotando ao seu redor, tome uma atitude! Poxa, que sociedade é essa que nos leva a se envergonhar de sermos a favor da vida, da paz, do respeito por parte do estado às leis que garantem os direitos básicos de qualquer pessoa, até mesmo daquelas q1ue cometeram um crime?

    Os presos de São Pedro de Alcântara foram julgados e condenados por seus delitos e o que se espera é que o Estado os trate com um mínimo de dignidade, esse é o caminho, o único, para que nunca mais tenhamos dias de terror e pânico e Seu João possa ter, na ida ao trabalho dentro do ônibus superlotado e caro, a volta das conversas sobre os resultados do Avaí e do Figueira.

     Imagem: neoparaiso.com

    1 COMENTÁRIO

    1. Os seus joões da vida, em detrimento de suas vidas tão dolorosas, participam, como todos – ou quase – do banquete da violência. Se acham pessoas de paz e boas, pq delegam, dia após dia, sua própria violência ao estado (governo, agentes penitenciários, polícia, etc), isto é, com essa delegação, não conseguem encarar que são tão violentas como as pessoas a que chamam “bandidos”. E daí que não fazem com suas próprias mãos as coisas? Não, não penso que seja uma questão só de reprodução ideológica… Com os nossos discursos, mesmo tomados de outros, justificamos nossa própria vida: os seus joões não querem, de fato, o fim da violência, o que significa também o fim das prisões, a dos outros e as suas próprias…
      De qualquer forma, texto tocante…

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