Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
A chuva começou a diminuir sua intensidade, Roberto acordou e conseguiu se mover para sair da Combi. Em seguida ajudou Ulisses e Inaiê, demorou cerca de duas horas para saírem da combi. Os três estavam com muita fome, com pequenos arranhões e assustados com o capotamento da ferrugem dos esperançosos. Naquela região, na divisa entre o Norte e o Centro Oeste brasileiro, não havia muito movimento, pairava o silêncio absoluto da humanidade, o silêncio não era absoluto, pelo fato de ser rompido pelos seres não humanos da natureza, que faziam seu espetáculo. Ulisses olhava para os seus amigos e não conseguia falar, a culpa tomava conta de seu ser, não tinha aberto a possiblidade do diálogo para a decisão, seu olhar carregava o receio de admitir que estava errado. Roberto percebeu como estava seu amigo e falou buscando animá-lo:
– Percebo a culpa inflamar esse seu ser que chamamos de Ulisses. Culpado podemos dizer que você é! Todavia, todos nós somos tão culpados quanto, pois nos deixamos conduzir e tomar decisões que colocaram em jogo a nossa segurança! Aliás, nas nossas vidas, quantas pequenas e grandes culpas temos e teremos por não dialogar e, principalmente, por não exigir o diálogo para condução e tomadas de decisões que afetam as nossas vidas? Muitas vezes fugimos das nossas responsabilidades dizendo que é coisa do destino ou que devemos deixar nas mãos de Deus, uma forma fácil de fugirmos de nossas obrigações. Vejo que todo ser humano tem seus momentos de incoerências e pequenas ou grandes hipocrisias. Um exemplo disso está no fato em que muitos de nós dizem que têm fé em Deus, mas colocam a prova de fogo toda a condução da vida, deixando o ser celestial como responsável, seria como se dissessem: “vou me atirar de um penhasco, pois tem a certeza que serei acudido”. Nesse caso, temos uma grande demonstração de não fé, pois seria possível acreditar e ter a necessidade testar a todo momento e não valorizar o arbítrio que foi concedido a humanidade?
Ulisses atordoado com o ocorrido, com seu erro abraçou os amigos chorando, pediu desculpas, em seguida olhou para a ferrugem dos esperançosos, percebeu que a frente estava toda amassada, juntamente com a lateral direita, mas não houve danos no motor, a estrutura geral ficou intacta, mas para o conserto seria necessário achar uma oficina, já era tarde, a noite se aproximava e não poderiam achar ninguém para socorrê-los, o mais prudente seria tentar colocar a combi “em pé”, para pegar alimentos e arrumar um abrigo para a noite. Os três amigos ergueram a ferrugem dos esperançosos, para surpresa de todos, a coruja voltou e pousou sobre o veículo. Nesse momento Inaiê, que tinha ficado todo tempo calada, resolveu romper com o silêncio:
– Os acidentes e erros que cometemos são uma dádiva dos seres viventes, podemos aprender com eles, o que se mostra inconcebível é, errar e não aprender, continuar insistindo nas visões equivocadas e esperar para que o mundo mude para provarmos as nossas verdades ou que estamos certos. Por isso, nunca mais deixe de conversar e discutir conosco meu irmão!
Nesse momento Ulisses falou:
– Na vida aprendemos com as pessoas, estou aprendendo com a minha irmã caçula, com meu amigo e temos muitas oportunidades de ampliar as nossas visões, para isso precisamos estar abertos, motivados ao mundo que nos cerca, que não se define como passado, presente ou futuro, mas corresponde a forma como vivermos, como escolhemos viver diante das circunstâncias. Agora o que vocês acham de montarmos um acampamento para essa noite? As coisas estão na nossa ferrugem.
Os três concordaram, Inaiê e Roberto organizaram um acampamento provisório, enquanto Ulisses preparou a janta, quando tudo estava pronto, os três sentaram, degustaram a janta, depois disso sentaram-se com uma xícara de café, ouviam o cantar constante da coruja e a natureza que os cercava. Nesse momento Roberto resolveu falar:
– Vamos demorar um pouco mais para chegar ao nosso destino, mas o mais importante é que ao procurarmos por seus irmãos não venhamos nos perder, não podemos ignorar o que temos a dizer, não podemos tornarmos estranhos mesmo fazendo a caminhada juntos, pois o mundo que vivemos já se encarregou de nos qualificar como estranhos, não somos reconhecidos, existe a estranheza e a indiferença, mas nós viajantes não podemos deixar ser seduzidos para o esquecimento e a indiferença em relação ao outro, a única forma de evitarmos isso é ouvindo e dialogando entre nós.
Ulisses ouviu atente Roberto e disse:
– Você tem toda razão, por alguns minutos esqueci da importância do diálogo e agora estamos aqui, estamos bem, mas o pior poderia ter ocorrido, poderia ter perdido um de vocês ou a própria vida. Nesse sentido, descobri que na democracia muitas vezes é mais fácil a teoria do que a prática, pois somos tomados por impulsos egoístas, que deixam a nossa visão das coisas obscuras.
Ulisses queria continuar, quando Inaiê o interrompeu:
– Realmente devemos ficar felizes, pois podemos apreciar um bom café, estamos no meio de uma trajetória, sem ter muita noção onde vamos achar alguém para nos socorrer. Porém, por mais que o momento pareça ser difícil, esteja longe do que queríamos, é um momento único e um privilégio que temos. Aqui aprendemos com os nossos erros, na sua questão sobre a teoria e prática, vejo que estás errado, não é o fato da teoria ser mais fácil do que a prática na democracia, mas é o fato de termos a falta da prática democrática em nossas vidas, como diria o filósofo Emanuel Kant: é muito mais fácil ter um senhor, que nos diga como proceder na dificuldade, como agir, é mais fácil ter um pai e uma mãe que nos dizem o caminho, é mais fácil ter um liderança, que faça por nós. Contudo, isso não forma cidadãos, a cidadania envolve uma prática, se procurarmos por um salvador encontraremos apenas nossa ruína como seres pensantes e o pior ainda como cidadãos.
Diante da fala de Inaiê, Roberto ficou pensativo e alguns minutos depois resolveu falar:
– Interessante a seu raciocínio Inaiê, não é a teoria que é o problema, mas fato de não estarmos tão dispostos em colocar em prática, aprendemos a ser bons servos com maior facilidade do que exercer a cidadania. Além disso, acrescentaria, em relação a sua fala, que é muito mais fácil falar da necessidade que os outros sejam, que são os estranhos no mundo, incluídos, pois não fazemos isso no cotidiano, não aprendemos, com o mundo em que vivemos, a prática de ver os outros nas relações, até dizemos que devemos tolerar, mas não temos a empatia ou capacidade de enxergar no rosto do outro a nossa definição, o nosso ser e com isso temos dificuldade de vivenciar a democracia, pois não dialogamos, aprendemos a construir um mundo de estranhezas e não de diálogo.
Logo após Roberto falar, os três decidiram que deveriam dormir, pois o debate sobre a democracia estava longe de acabar, mas seria oportuno descansar para no outro dia procurar por ajuda, mas nos pensamentos dos três estava presente o lampejo do despertar do pensamento, que insistia que democracia era possível, mas seria necessário uma mudança drástica na forma de ver das pessoas, dado que ao cidadão não é possível esperar que os outros façam, pois um governante nada fará por seu povo se esse não fizer por si mesmo. Enquanto os três pensavam em seu descanso, a coruja dos esperançosos levantava voo sintetizando a trajetória do despertar do pensamento dos três viajantes.
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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.
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