Por Antonio Martins, Outras Palavras.
I.
O neoliberalismo é um tempo de crimes silenciosos. O Conselho de Administração da Petrobrás decidiu na quarta-feira (1º/3) que nada sobrará, para a empresa ou a reconstrução nacional, do gigantesco lucro obtido em 2022, graças à exploração do petróleo brasileiro. Foram R$ 188,3 bilhões, duas vezes mais que o alcançado no mesmo ano por Itaú, Bradesco, Santander e Banco do Brasil, somados. Mas a fortuna será, mais uma vez, desviada.
Assim como faziam sob Bolsonaro, os conselheiros – nomeados em sua maioria pelo ex-presidente – decidiram distribuir, aos rentistas que possuem ações da empresa (em sua maioria privados e estrangeiros), os ganhos relativos ao quarto trimestre. Serão R$ 37,8 bilhões. O engenheiro Ildo Sauer nota: o dinheiro seria suficiente para construir uma refinaria capaz de processar 1 milhão de barris de petróleo por dia, gerar milhares de empregos e tornar o Brasil, de novo, autossuficiente na produção de combustíveis.
Ao longo dos últimos doze meses, os acionistas-rentistas terão recebido R$ 215,8 bilhões. A soma permitiria multiplicar por vinte o orçamento do Minha Casa Minha em 2023; e por 21 o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia. Também equivale a 22 vezes todo investimento da própria Petrobrás ao longo do ano passado. Hoje, o Estado brasileiro oferece a cada três dias, aos especuladores que sugam a Petrobrás, tudo o que o ministro Sílvio Almeida poderá gastar em quatro anos para defender os Direitos Humanos e a Cidadania dos brasileiros.
II.
Detentor da maioria das ações com direito a voto na Petrobrás, o Estado brasileiro poderia reagir à rapina de três maneiras, sempre nos limites da lei. A primeira seria estabelecer sua vontade, legitimada pelas urnas. Bastaria, por exemplo, substituir os membros da diretoria e do Conselho de Administração que representam a União, e foram nomeados por Bolsonaro. É um ato natural e corriqueiro em qualquer empresa privada ou estatal do mundo, lembra o advogado Gilberto Bercovici, titular da cátedra de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP – e não está limitado pela “lei das estatais”.
Se não desejasse chegar a tanto, o governo poderia lançar mão de uma iniciativa política ao mesmo tempo criativa e constrangedora. Um conjunto de personalidades – parlamentares, sindicalistas, intelectuais, artistas, influenciadores – iria a Brasília para pedir ao Tribunal de Contas da União, em caráter liminar, que suste o desperdício do dinheiro de uma empresa pública. Foi o que fez, em janeiro – de forma solitária, mas com repercussão notável – o geólogo Guilherme Estrella, ex-diretor de Exploração da Petrobrás e reconhecido como o descobridor do Pré-Sal. Uma ação coletiva repercutiria junto à opinião pública e certamente colocaria em pauta um tema hoje oculto pela mídia.
Por fim, em caso de moderação ainda maior, o governo poderia resignar-se e assumir o prejuízo – cuidando, porém, de nomear para o próximo período (que começa em abril, na assembleia geral da empresa) um Conselho de Administração em sintonia com os novos tempos. Não é isso o que se desenha. Embora defensora de Lula, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) aponta que o Executivo está indicando, para compor o conselho, pessoas interessadas na privatização da Petrobrás – entre elas, bolsonaristas notórios. Ao que parece, o governo delegou a designação ao ministro das Minas e Energia, o ex-senador Guilherme Silveira, um dos “donos” do PSD.
III.
As respostas já estão aparecendo. O neoliberalismo e o fisiologismo são como uma quadrilha que age de forma combinada para manter o governo em cativeiro e exigir sempre mais. Na terça-feira (28/2), o ministro Fernando Haddad atendeu às pressões do mercado por um “ajuste fiscal” e restabeleceu parcialmente os impostos federais sobre combustíveis. Pensou que satisfaria os abutres. Não foi preciso esperar 24 horas para que a banda do Centrão que apoia o Planalto anunciasse que só aprovará a medida – considerada “impopular” – se obtiver “compensação”. Em outra frente, a maior parte dos deputados do partido União Brasil, que amealhou três ministérios no governo, aderiu ao pedido de convocação de uma CPI-fake, cujo objetivo é embaralhar as investigações sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Diante das pressões, o governo recua amedrontado. Na quinta-feira (2/3), já se falava em adiar ao máximo a votação da medida provisória que reonera os derivados de petróleo.
Em poucas semanas de governo, a estratégia dos conservadores para contenção do governo Lula já está clara. A mídia liberal dispara contra as ousadias. A parte interessante do pacote de Fernando Haddad sobre combustíveis – um imposto de exportação sobre o petróleo cru, que estimula a construção de refinarias no país – foi qualificada como “medida abilolada” pela mídia. Em seguida, o Centrão recolhe os despojos. Troca o apoio às medidas do governo por concessões fisiológicas de cargos e verbas. Ao fazê-lo, fornece combustível para novas críticas da mídia e obriga o governo, enfraquecido, a pagar ainda mais pelos votos no Congresso. O jogo se repete ao infinito. Quanto mais gira a roda do pragmatismo, mais se esvaem as esperanças da população na democracia e se cria caldo de cultura para o fascismo.
IV.
Como reagir? Estabeleceu-se na prática, entre a esquerda, a noção de que, quando se está no governo, é preciso agir nos limites do jogo institucional. Questionar as instituições liberais seria desatino político. Favoreceria a ultradireita, em especial após a emergência de Bolsonaro.
Mas a disjuntiva entre curvar-se às instituições e atentar contra elas é falsa. Há uma alternativa a estas duas posturas. Implica, nas condições atuais, respeitar as regras da democracia liberal; exercendo, porém, pressão social permanente sobre o poder de Estado. Não é algo novo. Os movimentos sociais, que então renasciam, adotaram esta postura durante todo o período de ascenso das lutas populares que se estendeu entre o fim dos anos 1970 e 1988. Alcançaram, com isso, o fim da ditadura pós-1964 e a Constituição mais avançada da história do país. A pressão sobre as instituições voltou a ser exercida na resistência aos governos neoliberais, entre 1990 e 2002. Mas esmaeceu entre 2002 e 2016, sob Lula e Dilma, quando boa parte das antigas lideranças sociais instalou-se em postos no Parlamento e no Executivo.
Foi certamente por identificar este problema que o próprio Lula fez, antes e depois assumir novamente a presidência, discursos em que incentivava as críticas e a pressão sobre o governo. A inércia institucional é, porém, uma força persistente e pervasiva. Agora, será preciso um novo esforço para rompê-la.
V.
Crescem os sinais de que a relativa calmaria que caracteriza os inícios de governo está no fim. As más notícias vêm da economia. A insistência do Banco Central em manter taxas de juros elevadíssimas está produzindo efeitos desastrosos. Os investimentos do setor privado estão na lona. Ninguém se dá ao trabalho e aos riscos de produzir quando pode, em vez disso, multiplicar seu capital às custas do Tesouro – e a um ritmo de 8,5% ao ano acima da inflação (maior que o crescimento do PIB chinês…). Para piorar, a quebra das Americanas espalhou pânico nos circuitos de crédito e tornou ainda mais penosa a rolagem das dívidas das empresas. Se não houver reviravolta, explica o economista Paulo Nogueira Baptista Jr., a expectativa é de que, na melhor das hipóteses, o ano termine com crescimento zero. Uma recessão não está descartada e teria consequências políticas nefastas.
O Estado tem meios para agir – desde que supere a tendência a se acomodar aos limites institucionais e às chantagens do fisiologismo. Economistas como André Lara Resende e grandes conhecedores do Orçamento e das contas públicas, como a procuradora Élida Graziane, têm sugerido ao governo repensar as duas prioridades que está estabelecendo em sua pauta no Congresso. A “reforma” tributária em tramitação não avançará rumo à justiça fiscal, nem ampliará as receitas públicas. Por afetar interesses menores, é de difícil aprovação, tendendo a consumir capital político do Executivo. E o “novo arcabouço fiscal” em que trabalha o ministro Fernando Haddad é, por definição, uma lei que limita os gastos e a ação econômica do Estado – quando o necessário agora é expandi-los fortemente.
As crises têm, às vezes, o poder de despertar. Em 2008, o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, respondeu ao derretimento dos mercados financeiros globais com um conjunto de estímulos à economia que se mostrou altamente eficaz. Ele deveria inspirar atitude semelhante agora, inclusive com correção dos erros da época. O crédito e os recursos do Estado poderiam ser direcionados não a financiar empresas privadas – mas a um grande programa de realização de objetivos nacionais. Por exemplo: universalizar o acesso à água e saneamento, despoluir os rios urbanos e áreas costeiras, iniciar a transição energética, multiplicar o transporte público, garantir a excelência do SUS e reconstruir a escola pública. Cada uma destas ações é capaz de gerar centenas de milhares de ocupações dignas, de todos os níveis; e de abrir, por tabela, um vastíssimo leque de oportunidades para investimento privado produtivo.
Resgatar o Brasil da mediocridade a que se acostumou é tarefa muito árdua. Ninguém melhor que Lula – com sua imensa capacidade de politização didática e comunicação popular – para liderar esta virada. Ela exigirá mobilizar o que a sociedade tem de melhor. Mas requer um governo liberto da Síndrome de Estocolmo.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.