O coordenador da regulação da maconha no Uruguai explica as diferenças entre a legalização americana e a regulação uruguaia.
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Por Marcelo Pellegrini.
O Uruguai chamou atenção no início deste ano ao regular o consumo, o plantio e a distribuição de maconha, abandonando, assim, a lógica da guerra às drogas. A opção contraria a cartilha das Nações Unidas, que em 1961 ratificou como norma a repressão aos entorpecentes, e se deu por conta de uma constatação: o combate policial ao narcotráfico não reduziu o consumo de maconha no mundo, fortaleceu o crime organizado e aumentou a violência e o encarceramento nos países produtores ou que servem de rota do tráfico internacional de drogas.
Agora, em lugar da repressão, o Uruguai lida com o problema pensando em termos sociais e de saúde. Em entrevista a CartaCapital, Julio Calzada, coordenador do projeto de regulação da maconha quando esteve à frente da Secretaria Nacional de Drogas do Uruguai, nega que a decisão do governo de Pepe Mujica tenha sido irresponsável, compara o sistema uruguaio ao existente em estados norte-americanos e conta como a regulação foi pensada para não afetar os países vizinhos, principalmente Brasil e Argentina.
CartaCapital: Qual foi até aqui o impacto da regulação da maconha no Uruguai?
Julio Calzada: A regulação traz impactos econômicos e o sociais. Com o fim da proibição, os custos econômicos das forças policiais, do aparelho de justiça e prisional e do sistema de saúde são reduzidos. Se levarmos em conta que a maioria das pessoas presas por tráfico provém dos setores econômicos mais populares, também temos um impacto social forte. Com a proibição, as populações pobres são as que mais são presas, mas os maiores lucros do narcotráfico estão guardados no sistema financeiro e nas mãos de poucos.
CC: Existe algum setor que pode ser prejudicado com a regulação?
JC: Há uma ideia de que a classe média irá provar um aumento do consumo de drogas com a regulação. No entanto, isso é apenas uma hipótese. No Uruguai, por exemplo, não houve uma explosão do consumo após a regulação.
CC: Foi uma surpresa descobrir que não houve aumento do consumo?
JC: Seguimos o mesmo ritmo de evolução de consumo de maconha registrado há dez anos. Ou seja, houve uma continuidade da tendência registrada desde 2001. No entanto, ainda é cedo para dizer qualquer coisa. Só conheceremos os efeitos desta política depois de quatro ou cinco anos.
CC: Então, é esperado um aumento do consumo?
JC: Entendemos que acontecerá com a maconha o mesmo que ocorre com outras drogas lícitas. Existirá um aumento do consumo até chegar a um patamar estável, em seguida, haverá uma queda. É o que aconteceu com o tabaco nos últimos anos. Agora, temos que abrir o debate e elaborar políticas públicas para evitar o consumo de drogas lícitas e ilícitas por adolescentes, não por um problema moral, mas de saúde.
CC: Por que o Uruguai optou pela regulação em vez da legalização?
JC: Consideramos que cada realidade pede uma medida. Isso vale para os estados americanos também. Hoje, Washington, Colorado, Oregon e Alasca possuem modelos de regulação distintos. Nós optamos por esse modelo porque acreditamos que ele oferece mais garantias e segurança a todos, sobretudo, para nós, que somos um país pequeno em meio a dois gigantes como Brasil e Argentina. Entre as preocupações que tínhamos estava a de assegurar que a regulação não criaria uma nova rede de drogas com nossos vizinhos e conseguimos garantir isso. Hoje, o Uruguai pode consumir apenas seis variedades de cannabis. Com isso, temos um controle sobre o que produzimos e para onde vai essa produção.
CC: O modelo uruguaio priorizou os setores sociais e de saúde?
JC: A regulação uruguaia, pelo contrário, é uma política social e de saúde que pretende regular as consequências do uso de maconha como acontece com o tabaco e o álcool. Assim, priorizamos não apenas as liberdades individuais, mas também as liberdades coletivas. O mais importante é existir uma política para a cannabis integrada com a política de drogas e que ofereça saúde a quem faz um uso abusivo de drogas. Uma opção alternativa à uruguaia é o olhar norte-americano de regular por preço, visando impostos e sem necessariamente impor regulações sobre o tipo de publicidade que este setor produz e para quem ela se dirige. A visão norte-americana se baseia muito na mercantilização de tudo. Isso pode funcionar para os Estados Unidos, mas não é o objetivo do Uruguai.
CC: Haverá uma economia em relação aos custos do combate ao narcotráfico com a regulação da maconha?
JC: Sim, 80% do mercado do narcotráfico é a maconha. Isso afetará diretamente o mercado, embora os traficantes vão ficar com outras porções de mercado, como a cocaína e o crack. No entanto, o mais importante é que vamos retirar 150 mil usuários do mercado ilegal. Isso reduz significativamente o risco de violência. O fundamental é que essas pessoas terão um espaço legal para adquirir a maconha e isso vai facilitar que o mercado negro se retraia, por meio de uma ferramenta econômica e não de controle penal.
Foto: Pedro França/Agência Senado
CC: No entanto, uma pesquisa da Junta Nacional de Drogas, do Uruguai, mostra que 66% dos uruguaios ainda compram maconha do narcotráfico. Por quê?
JC: Isso se deve a um atraso em nosso planejamento. Porém, esperamos que as farmácias estejam funcionando até o final do ano e, com isso, o percentual de participação do narcotráfico neste mercado certamente será reduzido.
CC: Quantas empresas estão no processo de licitação?
JC: O processo se iniciou em agosto de 2014, com 25 empresas, e vamos selecionar entre duas e três empresas que atenderão o mercado nacional uruguaio. No país, há 1200 farmácias e estimamos que 20% delas irão desejar distribuir cannabis. Com isso, teremos entre 240 e 300 farmácias distribuidoras.
CC: A expectativa de geração de empregos com a regulação não deve se confirmar, correto?
JC: Muito se falou sobre a criação de empregos, mas com certeza isso não vai ser significativo. Claro que haverá alguma fonte de trabalho, mas as duas ou três empresas que irão plantar e distribuir a maconha criarão entre 70 e 80 novos postos de trabalho. Podem existir outros empregos secundários, mas não será nada significativo.
CC: E sobre o potencial que a regulação pode trazer em termos de pesquisas científicas?
JC: Já existem algumas pesquisas em curso. O dinamismo disso vai depender do investimento da indústria farmacêutica, mas as condições legais existem. Sabemos que existem muitos grupos enviando pedidos para instalar laboratórios no Uruguai. Há uma entidade da África do Sul e dos Estados Unidos, por exemplo, que se habilitou para fazer pesquisa sobre o potencial antioxidante da maconha. A Faculdade de Medicina e Química do Uruguai também está investigando a ação analgésica da maconha. Existem outros pedidos semelhantes.
CC: Existe a possibilidade de o Uruguai se tornar um polo científico de estudos da maconha ou um exportador de remédios à base de cannabis?
JC: Existem as condições.
CC: Há propostas industriais?
JC: Há dez propostas que tramitam no Ministério da Agricultura para plantar cânhamo. Essas propostas são para obter azeite com a semente, uso têxtil, entre outros.
CC: O Uruguai discutiu o projeto de regulação com a sociedade por um ano e meio. O senhor acha que em países geograficamente maiores, como Brasil, Estados Unidos e Argentina, esse longo processo de discussão é viável?
JC: Eu acho que é imprescindível. Porque se não há um amplo debate e construção de acordos é muito difícil modificar a política de drogas. Os Estados Unidos levaram mais de 40 anos para encontrar uma alternativa à guerra às drogas. Hoje, 58% da população americana é favorável à legalização da maconha, mas isso levou quatro décadas. É preciso que diferentes setores convirjam para uma plataforma mínima, mesmo que eles tenham ideias divergentes.
CC: O senhor fala em buscar uma maioria em torno de uma plataforma, mas a política de drogas, inclusive a uruguaia, é uma política que visa garantir o direito de uma minoria a acessar determinada substância com segurança e com supervisão de órgãos saúde. Até mesmo no Uruguai, a maioria da população uruguaia ainda é contra o direito de uma minoria de consumir maconha…
JC: Sim, mas isso é a função do Estado de Democrático de Direito: garantir os direitos de todos, sobretudo, o das minorias. A função do Estado em política de drogas não é garantir a repressão, mas sim garantir que o uso de drogas por uma pessoa não afete a terceiros.
CC: Ou seja, o debate tem que acontecer, mas não deve buscar uma maioria?
JC: Eu acho que deve criar as condições políticas para que as mudanças se concretizem. Essa é a essência da política.
Fonte: Carta Capital