A real do real. Por Marco Vasques.

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Por Marco Vasques, para Desacato.info.

Há um esgotamento no ar. A palavra não dá mais conta da vida. A vida não dá mais conta da morte. A morte não dá trégua. Há um esgotamento na terra. O ar está denso, funéreo, mas a cidade segue em plena movimentação. Homens transitam por todos os lados. Mulheres andam por todos os lados. Crianças andam por todos os lados. Há um esgotamento no mar. Águas sujas, plásticos e uma multidão de peixes boiam mortos, feito cemitério invisível. Há um esgotamento no fogo. Nossas paixões amainam, nossas revoltas se petrificam. Estamos menos sensíveis à dor de nossos companheiros, de nossos amigos, de nossos familiares. Estamos gélidos à dor daqueles que não conhecemos. A morte, anunciada a todo momento, tem empedernido grande parte de nossos viventes.

A morte, em todas as civilizações, recebe um tratamento simbólico. Todos muito distintos, alguns muito além da poesia inscrita no poema, pois são rituais poéticos incapturáveis pelo poeta. Alguns desses rituais são incompreensíveis para quem não os vivencia. Os egípcios, por exemplo, mumificavam seus faraós com objetivo de manter a integralidade corpórea, pois acreditavam que eles retornariam de algum modo. Os gregos enterravam alguns objetos junto ao morto para que ele não ficasse desprovido de sua cotidianidade e de suas necessidades. Há comunidades que comem um pedaço do corpo que feneceu. Há quem incinere o corpo e use as cinzas para fazer ópios. Enfim, são muitos os rituais que envolvem nossa saída do mundo. E sairemos, ainda que vivamos como se fôssemos eternos. Não somos. Somos mais frágeis que taça de cristal. Tudo ao nosso redor é muito sensível. Tudo muito instável. Na verdade não dominamos nada, não possuímos nada, nada deste mundo de matéria nos pertence definitivamente. Nada! Em um piscar de olhos, em um passo dado, em um levantar tudo pode ruir. Por isso não faz sentido a competição desmedida, o acúmulo desnecessário e a arrogância imperante em nosso dias.

A real da real é que construímos um mundo incapaz de razão. Sim, logo nós, que bradamos ao mundo que somos especiais, que o que nos diferencia dos outros viventes na terra é a razão, o domínio do conhecimento e as operações provenientes desse domínio. E a real do real é que todos os absurdos promovidos em nosso entorno estão diretamente vinculados ao acúmulo de riqueza, ou seja, ao capital, ao dinheiro e ao poder. A posse das coisas cria mundos tão distintos, tão absurdamente disparatados, que imaginá-los é um verdadeiro exercício de ficção. Algo está muito errado num mundo em que uma bicicleta pode custar mais de cem mil reais. Algo está muito errado num mundo em que duas ou três doses de remédio, capazes de curar uma criança e minimizar sua dor, custem milhões e milhões de reais. Vejam o caso da menina Laura. Algo está fora da ordem se temos pessoas sem moradia, sem comida. Algo está fora da ordem se há alguém vivendo sob as marquises. Algo está fora da ordem se há pessoas que não têm o que vestir, se há pessoas sem um cama para dormir.

Não é necessário razão para perceber que essas diferenças sociais gritantes não são compatíveis com uma sociedade que produz mais do que precisa para sobreviver. A esse respeito, existem pesquisas que apontam que a quantidade de alimentos que se perde no transporte seria capaz de aplacar a fome do mundo. Existem pesquisas que mostram que os grandes da indústria de alimentos os queimam, os enterram, os jogam fora para controlar o preço da demanda. A tal da oferta e da procura não é espontânea. Ela é gerada e gerida por um sistema macabro, sinistro de perpetua a miséria, a fome e a vida de nossos irmãos. É preciso também que todos sejamos responsáveis. Todos!

É necessário dizer que existe uma grande diferença entre culpa e responsabilidade. Não somos culpados porque nascemos dentro dessa estrutura, mas somos responsáveis. E essa responsabilidade implica lutar por uma outra estrutura, ou seja, uma estrutura que seja mais justa, mais igualitária, mais humana. Uma estrutura que coloque a vida, e todas as vidas, em primeiro plano. Um estrutura em que a coisa e as matérias inanimadas descartáveis sejam colocadas em último patamar. É nossa responsabilidade lutar para que o mundo se torne um lugar com menos fome, menos dor, menos desigualdade. Aliás, é nossa responsabilidade lutar por um mundo em que não haja nenhuma fome, nenhuma dor evitável, nenhuma desigualdade.

Vivemos tempos difíceis. Estamos com medo. Estamos estranhos. Amigos partem a todo momento. Amigos são levados pela pandemia. Amigos são levados pelo desespero. O esgotamento aparece em determinados momentos porque estamos realmente vivendo sob pressão o tempo todo. Há medo no ar. Há muita morte desnecessária no ar. Há dor no ar. E, infelizmente, há muita gente que não está nem aí para tudo o que acontece ao nosso redor.

Há um esgotamento de notícias. Há um esgotamento de pronúncia, pois estamos, há mais de um ano, numa nota infeliz e numa tarefa hercúlea de conscientizar as pessoas da necessidade urgente de haver muito cuidado uns com os outros. Há um esgotamento no ar porque não é agradável usar máscara o tempo todo. (Também não gosto, mas uso. É necessário. Por mim e pelo outro). Há uma espécie de falência coletiva, pois nossas diferenças sociais só aumentam. Há um esgotamento político, porque nada é capaz de sensibilizar os da seita. Eles estão dominados por um torpor, por uma decisão absoluta de matar toda sensibilidade, toda razão.

Mesmo o choro que escorre pelos olhos parece não dar mais conta do vazio que se instalou no coração. O mundo não parou para chorar, não parou para olhar os que realmente estão passando por dificuldades, para pensar no que realmente importa numa existência. Enfim, o mundo gira como se estivéssemos em plena normalidade. Confesso, tenho dificuldades com o meu tempo, com os homens do meu tempo. Precisamos driblar esse esgotamento para lutar. Precisamos pedir aos abastados, aos que possuem mais do que precisam, aos que possuem mais que o necessário para uma existência digna; precisamos pedir para que essas pessoas lutem e pensem em partilhar suas riquezas. Não é possível ser feliz numa comunidade dominada pela morte, pela fome, pela desigualdade social, pelo preconceito, pela misoginia, pela violência à infância, pela violência à mulher, pelas aberrantes divisões de classe, pela destruição constante da natureza, pela perseguição constante às minorias e, sobretudo, dominada pela necropolítica. Tudo isso está nos esgotando. Há um esgotamento no ar, mas precisamos achar uma senda coletiva. Saídas individualizadas só reforçarão o esgotamento imperante. É preciso andar com o coração nas mãos e oferecê-lo ao mundo.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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