Por José Neto.
O rapper Francisco Igor Almeida dos Santos, o Rapadura Foto: Reprodução |
Considerado pelo prêmio Hutuz 2009 o melhor artista do Norte/Nordeste do século XXI, o jovem cearense vem despertando a admiração de importantes figuras da música brasileira como Lenine, Marcelo D2, GOG, Mv Bill e Rappin Hood.
A inusitada “embolada” do rap com o repente, o coco, o maracatu, a capoeira, o forró, o baião e as cantigas de roda, fazem dele um dos precursores do século de um movimento em defesa da cultura popular.
Na integração do rap contemporâneo à música de raiz, suas letras exalam poesia em busca da identificação com o povo. “Muita gente acaba fazendo rap igual gringo e igual paulista, e se esquece da sua própria cultura. Se todo mundo parasse para analisar isso, se cada estado que tivesse a música rap com as características regionais, você ia ver como o movimento Hip Hop iria crescer muito mais, com uma identidade mais forte em todos os lugares,” afirma Rapadura.
O artista cearense ressalta ao Brasil de Fato a importância da identidade cultural, do orgulho de ser nordestino, e fala dos preconceitos dentro e fora de sua região.
Brasil de Fato – De onde surgiu o apelido “Rapadura”?
Rapadura – Bom, primeiro porque eu sou nordestino e como um bom nordestino, eu gosto de rapadura pra caramba [risos]. Sempre quando eu ia jogar bola com os meus amigos, voltava do jogo e entrava em casa para pegar um pote de rapadura e começava a comer. Os amigos passavam e fi cavam falando “rapadura, rapadura” aí ficou o apelido. Aproveitei e já inseri o nome do rap também: RAPadura.
Como você conheceu e se identificou com o movimento Hip Hop?
Eu conheci o movimento hip hop em Brasília, em 1997. Comecei a ouvir através de meu irmão, porém meu primeiro contato foi com a dança, o break, depois que eu fui cantar. Com 13 anos comecei a escrever. É como se fosse uma coisa natural, pois eu nunca tinha visto o rap na minha vida e comecei a fazê-lo com aquela sensação de que já estava em mim. Eu me identifiquei muito com a linguagem de manifesto e indignação, pois percebi que com o rap eu podia protestar contra os problemas na comunidade. Tudo que eu pensava, que eu sentia, transferia para a música, talvez essa tenha sido a causa principal da minha identificação com o movimento.
Em suas músicas há uma mistura da cultura nordestina (repente, coco, maracatu, embolada)com a cultura hip hop. Qual a importância dessa cultura para o Hip Hop, e vice-versa?
Se você pegar o coco, a embolada, o repente e o rap, todos são cantos falados, parecidos em sua expressão e linguagem. Se você ouve um repente de raiz, por exemplo, ele fala da vida do campo, das dificuldades, da alegria, da cultura, etc. O rap também relata as mesmas situações,mas, o mais importante disso tudo, é que a gente consegue fazer um verdadeiro rap nacional quando colocamos as nossas raízes dentro do rap, aí ele passa a ser nacional. As pessoas têm o costume de falar que é rap nacional pelo simples fato de cantar em português, mas não. O rap nacional tem que ser na sua linguagem, raiz e essência, com sua característica brasileira e regional.
Em seu clipe Norte, Nordeste a gente visualiza um nordeste diferente do que a própria mídia mostra. Você acha que esse é o seu principal papel no Hip Hop, cantar para que o povo saiba e entenda o que o nordeste realmente é?
O meu papel é mostrar que é possível a gente mudar algo com a nossa identidade, mas para isso temos que ter a compreensão do povo. Isso porque muitas vezes a gente deixa de falar o que pensa, deixa de ser o que é por vergonha. O padrão que é imposto pela própria mídia faz com que nós tenhamos vergonha de nós mesmos. Quando colocamos as nossas raízes dentro do movimento Hip Hop e nos deparamos com outras pessoas que se vestem e falam da mesma forma que a gente, passamos a ter uma referência e nos valorizamos mais. Temos que ter orgulho do que somos, porque até então, o rap era só São Paulo, só lá que dava prêmio, que fazia show grande, e o nordestino queria ser paulista. Agora não, a gente está começando a ganhar o nosso espaço com dignidade e demonstrando a nossa verdadeira raiz. Isso tudo nos dá referência. Quando, por exemplo, a gente canta com sandália de couro, chapéu de palha, fala “oxe” e diz que é do nordeste, a rapaziada fica com mais orgulho de ser nordestino. Quando eu comecei a cantar nos shows de rap com chapéu de palha e tudo mais, o pessoal me olhava estranho, como se eu fosse um extra-terrestre. Na verdade, inverteram-se os papéis. Hoje nós estamos tentando mudar o curso do rio.
Você já sofreu preconceito dentro do movimento Hip Hop pelo fato de ser nordestino?
Eu já passei por muito preconceito, ainda passo, mas aos poucos estamos conseguindo vencer. Estamos conseguindo mostrar que a nossa cultura e a nossa essência estão muito além de uma aparência, de uma cor, de uma região. A cultura é coletiva, é o Brasil todo.
Você tem algum projeto com o movimento Hip Hop no Ceará?
A última vez que fui ao Ceará foi em 2010. Fazia dez anos que não ia à minha terra. Na verdade, há uma desvalorização da própria região. Eu viajo o Brasil todo, tenho hoje meu trabalho reconhecido, ganho prêmios, mas a minha terra não me convida pra tocar, não me coloca nos eventos. São coisas que a gente não entende porque eu grito Ceará, grito Nordeste, eu defendo a minha região nos quatro cantos que eu vou, e não tenho essa valorização.
Mas isso ocorreria pelo fato de você cantar seu rap num lugar onde não é costume, no caso o Ceará?
Existe um preconceito por ser rap sim, mas tem aquela coisa, que santo de casa não faz milagre, ninguém acredita naquilo que está perto de você. Parece que precisa ser uma coisa distante para as pessoas acreditarem.
O Hip Hop ainda cumpre o seu papel de reivindicação, de protestar por melhorias e denunciar a exclusão social nas periferias? Ou migrou, de vez, para o campo comercial?
Eu digo que são gerações e gerações. Hoje a cabeça da molecada que está fazendo rap é diferente. Quando comecei em 1997, o Hip Hop tinha mais essa função de reivindicação mesmo, de sua raiz, falava sobre preconceito, cumpria mesmo o seu papel social. Mas não quer dizer que não haja mais isso no rap, pois quem começou dessa forma, ainda mantém sua essência. A questão é que hoje é outra época, essa geração se expressa como ela vê hoje o mundo, porque as coisas mudaram muito. Na década de 1980, quando o Hip Hop chegou em São Paulo, era uma época de ditadura militar, então os caras protestavam mais contra a ditadura, por causa da opressão e tudo mais. Porém, mudou a época e a visão também modificou.
Rapadura no 3º Festival Influenza, em 2010 – Foto: RAPaduraxc |
Mas você concorda que o rap também tem que ser vendido, tem que ser comercial? Muitos ainda sobrevivem daquilo que cantam, não é mesmo?
É muito importante a gente ser profissional, viver do que faz, da sua música, da sua arte, mas não podemos perder a nossa identidade, não podemos esquecer de onde a gente veio. É igual um representante do movimento Hip Hop mundial sempre fala, que “sua letra é sua alma, se você vender a sua letra, estará vendendo a sua alma”. Então, você pode falar sobre qualquer coisa, desde aquilo realmente tenha a ver com aquilo que você pensa, com aquilo que você sente. Até porque, por mais que tenha o artista e a pessoa, no final, o público não vai enxergar como duas pessoas, é uma pessoa só.
Você viver aquilo que canta também é importante, pois tem muitos que sobem no palco, cantam uma coisa, e quando descem do palco, é completamente diferente.
Exato. Não podemos perder a nossa dignidade. A coisa que eu tenho mais alegria hoje é de cantar uma música em que falo da minha cultura, da valorização e ainda sou aceito nos espaços. Faço shows, ganho meu dinheiro, e não preciso me vender, fazer letra banal, música sem fundamento só para as pessoas curtirem. Independentemente de qualquer coisa, a música tem que levar informação, sentimento e elevar o conhecimento das pessoas. Quando ouvem uma letra e não sabem bem o que significa, a ideia é que pesquisem sobre aquilo para irem aprofundando mais o conhecimento. Por exemplo, na música e no clipe Norte, Nordeste é para acordar todo o Brasil para todas as suas culturas regionais, porque muita gente acaba fazendo rap igual gringo e igual paulista, e se esquece da sua própria cultura. Se todo mundo parasse para analisar isso, se cada estado que tivesse a música rap com as características regionais, você ia ver como o movimento Hip Hop iria crescer muito mais, com uma identidade mais forte em todos os lugares.
É mais ou menos aquela frase, “quem não sabe da onde veio, não sabe pra onde vai”?
Exatamente. A gente nunca pode perder a nossa identidade. A nossa música tem que estar em todo lugar, nós temos que estar em todo lugar, ocupar os espaços com dignidade, e não de qualquer maneira.
Fonte: Brasil de Fato.