A Praça Tahrir gera o golpe

image_previewPor Gianni Carta.

O povo festejava na Praça Tahrir na quarta-feira 3, pouco depois de o exército ter deposto, por volta das 5 da tarde, o presidente Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana. Fogos de artifício, bandeiras, buzinas, abraços entre os manifestantes e beijos nos militares, por vezes perplexos, faziam parte da festa. A jovem Namees Arnous repetiu, como todos a protestar, que esta foi uma “Segunda Revolução”, a qual, em tese, concluirá a primeira. A primeira foi aquela que destronou o ditador Hosni Mubarak em fevereiro de 2011. Esta “segunda revolução”, ou golpe militar, se quisermos ser precisos, derrubou o primeiro presidente eleito pelo sufrágio universal (e o primeiro islamita) 12 meses atrás. Os motivos da ira contra o presidente e líder da Irmandade Muçulmana? “A economia vai de mal a pior, e a Constituição adotada sob o governo de Morsi tem como objetivo islamizar o Egito”, retruca Arnous, diretora-executiva da Bokranews, uma estação online de notícias.

Em contrapartida, os simpatizantes de Morsi, eleito por 51% do povo em junho de 2012, estão furiosos com o novo quadro político exatamente pelo fato de o ex-presidente ter sido escolhido por meio do sufrágio eleitoral. Portanto, a perspectiva de uma guerra civil não pode ser descartada. Além disso, “a solução militar também não agrada aos revolucionários”, emenda Youssef el-Chazli, cientista político especializado em Oriente Médio e Norte da África da Universidade de Lausanne. Confrontos entre as forças de segurança e partidários da Irmandade Muçulmana no Cairo e em Alexandria na noite de quarta-feira 3 deixaram pelo menos sete manifestantes mortos, segundo a BBC. Teriam tido o mesmo destino dez pessoas a protestar a favor de Morsi em outras cidades do país de 85 milhões de habitantes, o mais populoso do mundo árabe.

Arquiteto do golpe, o general Abdul Fattah el-Sisi, chefe das Forças Armadas e ministro da Defesa, havia dado um ultimato para que Morsi se demitisse ou chegasse a um compromisso com os manifestantes dentro de 48 horas, prazo a expirar na quarta-feira 3 às 4h30 da tarde. Adli Mansour, presidente interino, é o atual presidente da Suprema Corte de Justiça. A Constituição foi suspensa, uma nova será redigida logo que forem convocadas eleições parlamentares e presidenciais. Em breve, parece garantir o general El-Sisi.

“As Forças Armadas – disse o general – consideram que o povo nos pediu apoio, mas não para tomar o poder ou governar. Vamos servir ao interesse público e proteger a revolução.” Durante o golpe, cinco redes de tevê islamitas foram fechadas e militares investigaram a sede da Al-Jazira no Cairo. Por sua vez, Morsi e mais dois integrantes do governo estão sob a custódia das Forças Armadas e as autoridades têm mandados para aprisionar mais 300 filiados da Irmandade Muçulmana. Os islamitas convocaram uma manifestação nacional para a sexta-feira 5.

Há quem diga que o general El-Sisi se precipitou. Pouco antes das 5 da tarde da quarta-feira 3, Morsi postou no Facebook que estava preparado para compartilhar o governo com outras legendas e organizaria eleições dentro de poucos meses. Na verdade, em encontros com El-Sisi durante a quarta-feira em que seria destituído do cargo, Morsi disse estar aberto a compromissos. E mesmo no discurso à nação em tom desafiador em relação ao Exército na terça-feira 2, o ainda presidente declarou dispor-se a concessões. A mídia pouco comentou sobre essas intenções de Morsi e, ao que transparece, Washington não se opôs ao golpe, embora, em um primeiro momento, Barack Obama tivesse solicitado de Morsi um compromisso com os manifestantes.

Difícil acreditar que Obama não estivesse a par das tentativas de Morsi nesse sentido. Agora, em um de seus discursos vagos, Obama pediu que o poder volte rapidamente para mãos civis. Tudo leva a confirmar o seguinte: as Forças Militares, que recebem 1,5 bilhão de dólares anuais dos Estados Unidos desde o pacto de paz assinado entre o Egito e Israel em 1979, agiram em fina sintonia com o Tio Sam. Ademais, El-Sisi, soldado de carreira e ex-chefe do serviço militar de inteligência, tem fortes elos com o Exército norte-americano.

Vali Nasr, cientista político, reitor da Johns Hopkins School of Advanced Studies e ex-conselheiro sênior do Departamento de Estado dos EUA durante o primeiro mandato de Obama, disse em recente entrevista a CartaCapital que o atual presidente norte-americano “não tem uma estratégia para o mundo árabe”. Por exemplo, diante dos protestos em 2011 na Praça Tahrir, Obama pediu a demissão de Mubarak. No entanto, a saída de Mubarak, cortejado pelos norte-americanos até os protestos porque sabia lidar com Israel e conter legendas islamitas, deveria ter sido gradual. O motivo? “Agremiações sem a experiência da Irmandade Muçulmana teriam tido tempo para se preparar para as eleições”, retrucou Nasr. O mesmo cenário se aplica para a deposição de Morsi. Qual será a oposição a chegar ao poder quando os militares determinarem uma data para o próximo pleito?

El-Chazli, da Universidade de Lausanne, diz que o movimento anti-Morsi é um saco de gatos. O acadêmico alerta: “Seria errôneo dizer que é um conflito entre laicos e islamitas”. E acrescenta: “A campanha foi iniciada por um grupo chamado Tamarod (rebelião), formado por ativistas de diversas inclinações ideológicas e religiosas, e não por um movimento estruturado e organizado com uma linha clara”. Mesmo assim, “o grupo apresentou uma petição com 22 milhões de signatários favoráveis à destituição de Morsi. Esse número não é verificável, mas o anúncio em si é um golpe político”, argumenta El-Chazli.

Entre os participantes do movimento havia desde laicos, como o líder Mohamed el-Baradei, ex-diplomata das Nações Unidas e Nobel da Paz (2005) pelo seu trabalho na Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), até salafistas extremistas descontentes com o fato de Morsi não ter implantado a Sharia (código de leis do Islã) no país. De qualquer forma, a Irmandade Muçulmana, legenda mais bem preparada a vencer eleições no Egito, será, ao que se diz, mantida às margens do próximo pleito. El-Sisi tem mantido conversas com El-Baradei, o clérigo sunita xeque Ahmed Tayeb, e o papa copta Tawadros II. Nenhum representante da Irmandade Muçulmana tem participado dos encontros.

Morsi, na verdade, sentia-se seguro na Presidência, porque tinha o apoio de Obama. Sua moderação no cessar-fogo durante a guerra de oito dias entre o Hamas, legenda com braço armado em Gaza, e Israel foi decisiva. A trégua foi assinada em 21 de novembro de 2012. À época o New York Times falou em uma nova e até pouco tempo antes impensável aliança entre o Egito de Morsi e Israel. Quem poderia imaginar o presidente da Irmandade Muçulmana do Egito envolvido em uma relação profícua com Obama? Ainda segundo o NYT, Obama ficou “impressionado” com o pragmatismo de Morsi e com o fato de ele ser pouco apegado a ideologias. Disse Obama: “Esse é um homem preocupado em resolver problemas”.

Joseph Lewis, professor de inglês, vê qualquer parceria entre Washington e o Cairo com ceticismo. “Os Estados Unidos não estão preocupados com o fato de termos tido um golpe de Estado aqui. Eles só querem saber se seus interesses serão atendidos”, opina. “Os EUA levam quem estiver no poder no Cairo a fazer o que bem entender se resolver os problemas geopolíticos dos americanos.”

Nesse quadro nebuloso da “Primavera Árabe”, um título inventado pelos ocidentais à espera de uma “Revolução de Veludo”, como nos países do Leste Europeu, os norte-americanos não se deram conta de que ao longo da história revoluções são, na sua vasta maioria, duradouras. Ademais, no Leste Europeu não havia, com algumas exceções, o problema do sectarismo a permear os países árabes. Washington apoiou ditaduras, inclusive a de Mubarak, porque lhe convinha. Agora apoia El-Sisi em grande parte graças aos laços que o general tem com os EUA. No entanto, Morsi achava ter neutralizado o poder do Exército. Até o fim, o presidente deposto forçou cerca de 70% dos generais a se aposentar. E, além de ele acreditar no apoio de Obama, o golpe o colheu de surpresa.

O ex-presidente, diga-se, o nomeou ministro da Defesa em agosto. Religiosa praticante, a mulher de El-Sisi enverga o niqab, o véu que esconde o rosto inteiro. Aos 58 anos, El-Sisi é duas décadas mais jovem que seu antecessor, o general Hussein Tantawi. Consta que, quando Morsi o promoveu para o posto de Tantawi, El-Sisi parecia muito nervoso. “Comporte-se como um homem”, disse Morsi. O ex-presidente islamita estava convencido de que podia contar com o também islamita El-Sisi. E o povo também.

Mas El-Sisi é, antes de tudo, fiel à sua farda. Nascido no Cairo, recebeu diploma em ciências militares na academia militar egípcia em 1977. Em 1992, fez estudos em uma academia militar britânica e, finalmente, como numerosos soldados egípcios, cursou uma escola militar norte-americana. Tido atualmente como herói nacional, não se deve esquecer que ele apoiou barbaridades realizadas pelas Forças Armadas durante os protestos. Por exemplo, espancavam e detinham mulheres que protestavam, e em seguida as obrigavam a se despir e passar por “testes de virgindade”. Acusadas de prostituição. Nos últimos protestos, cerca de cem mulheres foram agredidas sexualmente, das quais várias foram estupradas.

Surrealista a crença compartilhada por significativa parte dos manifestantes de que o Exército e um governo interino são a salvação para o país. Não se lembram de que, entre fevereiro de 2011, após a queda de Mubarak, e junho de 2012, quando Morsi foi eleito, passaram-se 16 longos meses, durante os quais os militares trataram manifestantes com inaudita brutalidade? Por que El-Sisi se portaria da mesma forma? O Exército permanece como a instituição mais poderosa do país. Esse poder nasceu no Egito moderno quando os militares do coronel Gamal Abdel Nasser e seus “oficiais livres” depuseram a monarquia e estabeleceram a primeira república, em 1952.

Se Morsi parecia interessado em dialogar, não quer dizer que escasseassem motivos para a insatisfação com sua presidência. As reformas por ele anunciadas durante a campanha de 2012 não passaram de promessas. Os protestos na Praça Tahrir e país afora ocorreram a partir do fim de novembro, quando Morsi promulgou um decreto pelo qual conferia a si direitos plenos. “Derrubamos um ditador laico e elegemos no posto um déspota islamita da Irmandade Muçulmana”, resume Arnous. Em entrevista por telefone, Egbert Harmsen, especialista em Oriente Médio e Norte da África da Universidade de Leiden, na Holanda, disse: “Morsi alegava ter optado por uma ditadura para salvar a revolução de 2011”. E ditaduras, prossegue o acadêmico, “sempre se iniciam com a suposta necessidade de medidas de emergência”. Foi o caso do Chile, quando Augusto Pinochet deu um golpe, mas também na Alemanha, quando Adolph Hitler ampliou seu poder, continua Harmsen. “Mas, veja, não estou a comparar Morsi com Pinochet ou com Hitler, mas o princípio que o levou a se transformar em ditador por decreto é o mesmo dos déspotas do Chile e da Alemanha.”

Morsi argumentava, no entanto, que o decreto seria o único meio para completar a transição democrática e para realizar as corretas medidas econômicas. “Eu nunca infringiria os direitos pelos quais passei minha vida lutando”, martelava o ex-presidente. O último ditador portou-se como o seu antecessor, Mubarak, que reinou por três décadas. “Morsi não foi nada proativo em termos de reformas”, observa El-Chazli. “Ele foi responsável por numerosas detenções de militantes nos últimos meses. Trata-se de uma prática que vai mais no senso da continuidade das práticas da era Mubarak, mas em uma nova era.”

No plano econômico, Morsi revelou-se um fracasso. Uma em cada cinco pessoas vive com 2 dólares diários. Os preços aumentaram 4,5% no ano passado, enquanto a receita doméstica sofreu uma queda de 11,4%. A inflação de 8,7% no ano passado pode chegar a 13% neste ano. A taxa de desemprego é de 18% e de 46,4% para aqueles entre 20 a 24 anos. O turismo que representa mais de 11% do PIB sofreu uma queda de 70%, e o déficit do balanço de pagamentos é de 11,3 bilhões de dólares, enquanto a dívida externa beira os 40 bilhões de dólares. Como diz o editorialista Issa Goraieb, do diário libanês L’Orient-Le Jour, os habitantes de países árabes vivem “com esperanças entre a sombria crueldade de ditaduras e o obscurantismo de partidos religiosos”. Acrescente-se: e com a esperança de uma vida digna e comida na mesa.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/internacional/a-praca-tahrir-gera-o-golpe-3758.html/view

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