A paixão do Che Guevara pela literatura

Che era um leitor assíduo e mesmo nas caminhadas mais difíceis em meio à selva, fazia questão de carregar seus livros, apesar do peso

Por Tiago Nery.

No poema Lisboa revisitada, Fernando Pessoa escreveu: “(…) só és lembrado em duas datas, aniversariamente: quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste ”. Ernesto Che Guevara parece ser uma dessas pessoas que só são lembradas no aniversário de sua morte. Com frequência, exalta-se a figura do herói-mártir do voluntarismo revolucionário, do guerrilheiro heroico.

Guevara passou por várias metamorfoses ao longo da vida, e essas mutações bruscas foram a marca de sua personalidade. Ele teve muitas vidas simultâneas – a do viajante, a do médico, a do aventureiro, a do crítico social – que se condensaram e se cristalizaram, por fim, em sua experiência de condottieri, como gostava de denominar-se. No entanto, pouco se escreveu sobre sua paixão pela leitura, que remonta à sua infância, e que o acompanharia até seu assassinato na Bolívia.

De acordo com o próprio Guevara, seu interesse pela leitura começou ao tentar ocupar-se durante os ataques de asma, quando seus pais o obrigavam a ficar em casa, fazendo as inalações prescritas por eles. Devido às crises de asma, a mãe foi a pessoa que lhe ensinou a ler, pois ele muitas vezes não podia ir à escola. A partir de então, ele se transformou num leitor voraz. Alberto Granado, o amigo que o acompanhou na viagem pela América do Sul, ficou intrigado quando descobriu que o jovem Ernesto “já estava lendo Freud, gostava da poesia de Baudelaire e lera Dumas, Verlaine e Mallarmé em seu idioma original, bem como a maioria dos livros de Émile Zola, os clássicos argentinos, como o épico Facundo de Sarmiento, e as mais recentes obras de William Faulkner e Jonh Steinbeck” (Anderson, 1997, p. 46).

Ao longo de sua trajetória, Guevara procurou um modo de unir a leitura à vida. Como leitor, procurou completar o sentido de sua vida por meio de imagens extraídas das leituras que fazia. Guevara viveu sua vida a partir de certo modelo de experiência, que leu e que procurou repetir e realizar. Foi uma pessoa que encontrou em algumas cenas lidas, um modelo ético, de conduta, a forma pura da experiência. Há uma passagem em sua vida sobre a qual Cortázar escreveu um conto, em que Guevara, ferido, pensando que estivesse à morte, lembra-se de um relato que leu. Assim escreveu em Passagens da guerra revolucionária: “Na mesma hora comecei a pensar na melhor maneira de morrer, naquele minuto em que tudo parecia perdido. Lembrei-me de um velho conto de Jack London, em que o protagonista, apoiado no tronco de uma árvore, toma a decisão de acabar a vida com dignidade, ao saber-se condenado à morte, por congelamento, nas regiões geladas do Alasca. É a única imagem de que me lembro”.

A vida de Guevara foi marcada pela constante tensão entre o ato de ler e a ação política; entre a leitura e a vida prática; entre a figura sedentária do leitor e a imagem do guerrilheiro que avança. Mais do que uma paixão, a leitura era para ele uma dependência. “Minhas duas fraquezas fundamentais: o fumo e a leitura”. Pode-se falar de uma leitura feita em situações de perigo. São sempre situações de leitura extrema, fora de lugar, em circunstâncias de desorientação, de ameaça, de morte. A leitura opondo-se a um mundo hostil, como os restos ou lembranças de outra vida. No excelente ensaio Ernesto Guevara, rastros de leitura, o escritor Ricardo Piglia define com precisão esses momentos de leitura nos intervalos da marcha contínua da guerrilha: “essas cenas de leitura seriam o vestígio de uma prática social. Trata-se de uma pegada – um tanto borrada –, de um uso do sentido que remete às relações entre os livros e a vida, entre as armas e as letras, entre a leitura e a realidade” (2006, p. 101).

Em Guevara, a leitura foi uma espécie de filtro que lhe permitiu dar sentimento à experiência; a leitura foi um espelho da experiência, definindo-a, dando-lhe forma. Além disso, serviu como metáfora da diferença entre sua vida política e sua vida pessoal, permanecendo como um resto do passado, em meio à experiência da ação pura, do desprovimento e da violência, na guerrilha, na montanha. Isso já era percebido no período da luta em Cuba. Em um testemunho sobre a experiência da guerra de libertação cubana, alguém afirma, referindo-se a Che: “leitor incansável, abria um livro quando fazíamos uma parada, ao passo que nós, mortos de cansaço, fechávamos os olhos e tratávamos de dormir”. Há uma foto dessa época, na qual é possível observá-lo lendo uma biografia sobre Goethe num acampamento guerrilheiro.

Existe uma outra, extraordinária, que capta o momento em que Guevara está lendo, em cima de uma árvore, em meio à desolação e à experiência terrível da guerrilha perseguida, na Bolívia. Trata-se de Guevara como o último leitor. Ademais, como costumava fazer, ele também registrava em seu diário a experiência pessoal e coletiva na qual estava inserido. Escrevendo sobre si mesmo, sobre o que lê, e sobre o que vivencia, Guevara fixa a experiência em si, que permitirá em seguida ler sua própria vida como se fosse a de outro, e reescrevê-la. No entanto, o Diário da Bolívia é excepcional, por não ter sido reescrito.

O conflito permanente entre a ação e a leitura continuará perseguindo-o até o fim da vida. Em meio à marcha da história, a figura do leitor estará sempre presente em Guevara. Desse modo, é possível observar uma tensão constante entre o ser isolado, sedentário, reflexivo, e o ser político, o homem de ação. Há um relato sobre o primeiro combate da guerrilha boliviana no qual ele estaria lendo, estendido em sua rede, esperando o momento exato de dar início à emboscada. Ainda no sofrido país andino, quando por fim é capturado, no dia 8 de outubro de 1967, Guevara, já sem forças, carregava livros.

Enquanto todos se desfizeram daquilo que dificultava a marcha e a fuga, Ernesto Che Guevara continuou mantendo seus livros, que pesavam e eram o oposto da leveza exigida pela marcha.

Nos momentos finais de sua vida, as figuras do leitor e do político voltariam a unir-se, pois estavam juntas desde o início. Enquanto estava preso na escolinha de La Higuera, pouco antes de ser assassinado, a única pessoa que assumiu uma atitude solidária com Guevara foi a professora do lugar, Julia Cortés, que lhe levou um prato de comida que sua mãe havia preparado. Quando entrou na sala, encontrou o Che jogado no chão, ferido. Então – e estas seriam suas últimas palavras – Guevara mostrou-lhe uma frase escrita na lousa e lhe disse que a mesma não estava correta. Com sua ênfase na perfeição, ele falou: “falta o acento”. A frase era “yo sé leer” (‘eu sei ler’). Por uma dessas ironias do destino, como um oráculo, uma cristalização quase perfeita, a frase corrigida por Guevara tinha a ver com a leitura.

Como afirma Ricardo Piglia, Guevara “morreu com dignidade, como o personagem de Jack London” (2006, p.131). Morre o homem. Ficam suas ideias, seu exemplo, sua determinação.

Referências:

ANDERSON, JL. Che Guevara: uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
PIGLIA, R. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

*Tiago Nery é mestre pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio.

Fonte: Vermelho.

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