Por Sergio Lirio.
Banzer (Bolívia), Bordaberry (Uruguai), Geisel (Brasil) e Pinochet (Chile): união para matar e torturar
No fim de novembro, a Itália iniciou o julgamento à revelia de três militares e um policial civil brasileiros acusados do desaparecimento do ítalo-argentino Lorenzo Viñas durante a ditadura.
Os coronéis João Osvaldo Job, Carlos Alberto Ponzi e Átila Rohrsetzer e o delegado Marco Aurélio da Silva, já falecido, integraram a Operação Condor, um consórcio internacional de órgãos de repressão para caçar e eliminar dissidentes políticos no Cone Sul.
A “cooperação” envolveu o Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia. Viñas militava no grupo argentino Montoneros e desapareceu nas proximidades da gaúcha Uruguaiana em junho de 1980.
Pela primeira vez agentes brasileiros da ditadura vão responder na Justiça por seus crimes, infelizmente longe das fronteiras do País. “Provavelmente será a última oportunidade de assistir à punição de repressores nativos por crimes contra a humanidade”, afirma Jair Krischke, fundador e presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre e testemunha de acusação no processo italiano.
A relação de Krischke com a Operação Condor é pessoal e acadêmica. Em 1980, o ativista havia sido incumbido de receber em Porto Alegre o padre Jorge Oscar Adur, capelão dos Montoneros, enviado ao Brasil para acompanhar uma audiência das Mães da Praça de Maio com o papa João Paulo II, em visita ao País.Ardur nunca chegou ao seu destino, assim como Viñas, que viajava ao Rio Grande do Sul no mesmo dia. Desde então, Krischke dedica-se a reunir documentos e informações a respeito da ação conjunta das ditaduras, além de denunciar os seus crimes. “A Operação Condor foi inventada no Brasil”, garante.
CartaCapital:Qual a sua avaliação do início do julgamento na Itália dos militares brasileiros envolvidos na Operação Condor?
Jair Krischke: As perspectivas são ótimas. A procuradora Tiziana Cugini é muito interessada, atenta e detalhista. Os jurados acompanham com atenção o caso e a juíza está disposta a escutar.
Não costumo alimentar falsas expectativas, mas fiquei bastante satisfeito com a condução do processo. Em março, teremos nova audiência, quando assistiremos aos depoimentos de Claudia Allegrini, viúva de Lorenzo Viñas, e Silvia Noemí Tolchinsky, ex-secretária do líder montonero Mário Firmenich e presa pela repressão argentina quando tentava fugir para o Chile.
Ela foi barbaramente torturada e levada a Paso de los Libres, para servir de “marcadora”, para identificar outros militantes, na aduana da ponte que liga a cidade a Uruguaiana, no Rio Grande do Sul.
CC:Qual a importância desse julgamento na Itália para quem luta por verdade e justiça no Brasil?
JK: Provavelmente será a última oportunidade de assistirmos à punição de repressores brasileiros que cometeram crimes contra a humanidade. Nossos tribunais não têm tido a coragem cívica e jurídica para enfrentar o tema.
Chegam ao ridículo de desconhecer o que a jurisprudência internacional consagrou: crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. E mais: o sequestro e desaparecimento de Lorenzo Viñas ocorreu depois da promulgação da lei da anistia no Brasil, publicada em 28 de agosto de 1979.
O governo brasileiro indenizou os familiares dos argentinos desaparecidos no Brasil, incluídos Viñas e o padre Jorge Oscar Adur, assumindo a responsabilidade do Estado nos crimes praticados por seus agentes, mas não teve a coragem de puni-los na forma da lei.
CC:Como o senhor se tornou uma testemunha no processo?
JK: Os sumiços de Viñas e Adur ocorreram no mesmo dia e local. Na ocasião, o papa João Paulo II era esperado em Porto Alegre.
As mães da Praça de Maio, que tinham ido a Roma e à Cidade do México em busca de uma audiência com o pontífice, sem sucesso, viriam ao Brasil para tentar encontrar João Paulo II e denunciar os crimes da ditadura argentina. E solicitaram meu apoio para convencer os bispos do Rio Grande do Sul.
Conversei com o falecido dom Antonio Cheuiche, que, após muito esforço, logrou uma audiência de cinco minutos com o papa. O padre Adur, capitão-capelão do grupo Montoneros, foi escalado para acompanhar as Mães da Praça de Maio na audiência e ser o portador de uma mensagem da brigada armada para os bispos brasileiros.
Os repressores tinham conhecimento de sua chegada, dados a respeito de sua viagem. Fui recepcioná-lo em Porto Alegre, mas ele não estava no ônibus. Denunciei o desaparecimento às autoridades e à mídia, nacional e internacional. Por conta do sumiço de Adur, soubemos de Viñas. Nos últimos 37 anos, nunca deixamos de investigar e reunir o máximo de informações a respeito.
CC:Não foi a primeira vez que o senhor depôs sobre o caso, certo?
JK: Certo. Meu primeiro depoimento oficial foi prestado ao procurador Giancarlo Capaldo em dezembro de 1999, na Embaixada da Itália em Buenos Aires. No mesmo dia, estive na Justiça Penal Federal argentina, especificamente com o juiz Claudio Bonadio. Em 2005, falei novamente à Justiça argentina em Paso de los Libres.
No ano, Capaldo solicitou-me um informe completo sobre o aparelho repressivo brasileiro, sua estrutura e operacionalidade. Dizia ele que havia estudado os sistemas dos países do Cone Sul e os entendido, mas no caso brasileiro ele confessava uma dificuldade. Apesar de ter combatido incansavelmente a ditadura, pela primeira vez sentei para escrever sobre o seu funcionamento.
CC:O senhor diz que a Operação Condor foi inventada pelo Brasil. Pode explicar?
JK: Não digo, provo com documentos que a Operação Condor, a colaboração dos aparatos repressivos das ditaduras do Cone Sul, foi inventada no Brasil. Antes de virar Operação Condor, chamava-se “Busca no Exterior”. O primeiro caso documentado foi a captura em Buenos Aires do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, seu filho e um sobrinho, em dezembro de 1970.
A segunda operação, igualmente documentada, ocorreu em junho de 1971, também em Buenos Aires. A vítima se chamava Edmur Péricles Camargo. Contra documento não há argumento. A não ser que seja falso, o que não seria difícil de se comprovar. JK: A tal reunião serviu apenas para dar o nome de Condor, uma sugestão do coronel uruguaio José Fins.
Foi uma reunião de batismo para algo existente há mais tempo. Não é segredo que dois militares brasileiros participaram do encontro em Santiago, em novembro de 1975. Declaram-se observadores e não assinaram a ata.
O coronel Manuel Contreras, chefe da Direção de Inteligência Nacional do Chile, convidou o general brasileiro João Figueiredo para a reunião, mas este foi impedido de participar pelo então ditador Ernesto Geisel. Figueiredo, como se sabe, substituiria Geisel no comando do regime.
CC:O que o senhor achou do resultado da Comissão da Verdade instalada no governo Dilma Rousseff?
JK: A comissão serviu para jogar uma pá de cal no assunto. Tratou-se de um verdadeiro insulto à cidadania e à história. Convocado por Rosa Cardoso a depor, especialmente sobre a Operação Condor, respondi que iria com o maior prazer, desde que meu depoimento fosse público (até então, acontecia a portas fechadas).
Salientei apenas que uma questão pontual não poderia deixar de ser tratada publicamente, pois havia a oportunidade única de se tomar o depoimento de um destacado “agente Condor” ainda vivo e lúcido em Montevidéu. O agente havia se tornado pastor de uma dessas igrejas de vigarice. Na ocasião, acertamos uma viagem em janeiro para ouvi-lo.Ela ficou para fevereiro, depois março. Quando entendi que não aconteceria nada, fui a Montevidéu. Soube que ele acabara de morrer. Esta é uma de várias decepções.
CC:O senhor acredita que, a exemplo dos vizinhos, agentes da repressão e seus chefes serão levados a julgamento no Brasil?
JK: Nem quando morcego doar sangue. É o resultado do processo político brasileiro, onde não ocorreu uma transição, tão somente uma vergonhosa transação. Aqui, certamente nem o cabo da guarda será molestado um dia, irá a Justiça, quanto mais os seus superiores.
Fonte: Carta Capital