A máquina oculta de propaganda do iFood

    Caco Bressane/Agência Pública

    Síntese da matéria da “Agência Pública” por Clarissa Levy.

    Clarissa Levy através do Agência Pública publicou uma minuciosa matéria sobre a máquina oculta de propaganda do iFood. Acessou mais de 30 documentos das campanhas — entre relatórios de entrega, cronograma de postagens, vídeos, atas de reuniões e trocas de mensagens —, além de conversar com pessoas que trabalharam nas agências e acompanharam a campanha desenvolvida para o iFood durante pelo menos 12 meses. As pessoas entrevistadas foram mantidas em anonimato nesta reportagem por temerem represálias profissionais após a publicação da denúncia.

    No dia 1o de julho de 2020, entregadores de aplicativos paralisaram as atividades em 13 estados do país e no Distrito Federal, em uma mobilização nacional que ficou conhecida como o primeiro grande “Breque dos Apps”. Com a greve, os entregadores reivindicavam aumento no valor pago por entrega, medidas de proteção contra a covid-19 e melhores condições de trabalho.

    À noite, poucas horas depois do “Breque”, o iFood lançou uma carta para rebater críticas, divulgando em horário nobre da TV aberta um anúncio que destacava que a empresa “oferece seguro contra acidentes pessoais e que a maioria [dos entregadores] valoriza o fato de ter flexibilidade de horário e liberdade para compor sua renda”. Começava ali uma campanha da empresa contra as manifestações dos entregadores.

    Com a visibilidade alcançada pela greve, a estratégia de comunicação do iFood não se limitaria a comerciais na TV que defendessem a reputação da empresa. Oito dias após o “Breque dos Apps” foi criada a página “Não Breca Meu Trampo” no Facebook. “O objetivo era suavizar o impacto das greves e desnortear a mobilização dos entregadores”, explicou à reportagem uma pessoa que afirma ter acompanhado o trabalho desenvolvido pelas agências de publicidade.

    A descrição da página dizia: “A gente quer melhorar de vida e ganhar mais. SEM patrão e salário mínimo. No corre bem feito a gente tira mais e não tem chefe pra encher o saco. A gente quer liberdade pra trampar pra quem a gente quiser!”.

     

    A página “Não Breca Meu Trampo”, foi criada pela Benjamim Comunicação, agência que não possui site nem redes sociais ativos e tem como sócio e administrador Luiz Flávio Guimarães Marques — mais conhecido como Lula Guimarães no universo do marketing político-eleitoral. Lula foi o responsável pela propaganda da campanha presidencial de Eduardo Campos e Marina Silva (2014), de Alckmin à Presidência (2018) e de João Doria à prefeitura de São Paulo, em 2016. Nos arquivos do projeto para o iFood, aos quais a Pública teve acesso, Lula é mencionado como diretor da Benjamim e pessoa para quem se apresentavam os relatórios para aprovação. Além da página a agência teria coordenado a criação de outras duas páginas e ao menos oito perfis falsos.

    Quando a “Não Breca Meu Trampo” foi criada, um grupo com o mesmo nome foi aberto por Moriael Paiva, também no Facebook. Marqueteiro conhecido no universo da propaganda política, Paiva coordenou as campanhas de Gilberto Kassab em 2008 e José Serra em 2010. Em seu perfil no LinkedIn, descreve-se como consultor em gestão de crise e posicionamento digital.

    Em seguida quem passou a administrar a página “Não Breca Meu Trampo”, foi a SQi, uma agência focada no gerenciamento de crises, campanhas políticas e monitoramento de redes para entes públicos e privados — segundo seu site. Ela trabalha com base em programas de monitoramento de redes sociais — conhecidos como softwares de “big data” por terem a capacidade de obter informações a partir de conjuntos muito volumosos de dados. A empresa foi contratada por João Doria para fazer monitoramento de suas redes, segundo publicação da BBC Brasil. Atualmente, também cuida do monitoramento de redes e marketing digital do Corinthians.

    Em 19 de janeiro de 2021, a equipe de criação da agência lançou uma nova página, focada em memes. A “Garfo na Caveira” — página que segue ativa — posta piadas com temas de interesse dos entregadores e enaltece o trabalho de entrega via aplicativos, no Facebook e Instagram.

    Marketing 4.0: “para que ninguém desconfie”

    “As páginas foram feitas para interagir com os entregadores, para entender eles. Mas também para ajudar o iFood no seguinte sentido: as pessoas querem fazer greve, mas o iFood não quer greve, então, ao invés de cancelar a manifestação e soltar um monte de fake news, nós usávamos a inteligência [digital] para entender como é que poderíamos esvaziar a narrativa da greve”, contou uma fonte que também afirmou ter trabalhado no projeto por meses.

    Uma das fontes que afirma ter trabalhado nas campanhas contratadas pelo iFood disse “é o que chamam de marketing 4.0”. “Você posta memes, piadas e vídeos que promovem uma marca ou ideia, mas sem mostrar quem está por trás. Sem assinar”, explica. “É aquele tipo de conteúdo que te deixa em dúvida: você não sabe se foi um meme, uma coisa que surgiu na internet ou se teve alguém por trás”.

    Condições de trabalho dos entregadores de APP

    A maioria dos entregadores (61%) trabalha sete dias por semana para o aplicativo. O levantamento aponta ainda que 47% trabalham mais de 10 horas diárias, e 17% passam mais de 12 horas fazendo entregas. A margem de erro declarada na pesquisa é de 2,5 pontos percentuais. Outros estudos apontam para a mesma realidade: uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia (Ufba) revela que a jornada de trabalho ultrapassa 10 horas entre os entregadores que têm os aplicativos como principal fonte de renda.

    A jornada de trabalho extensa aparece nas postagens de “Garfo na Caveira” em formato de memes ou posts motivacionais.

     

    Em junho de 2021, as páginas “Não Breca Meu Trampo” e “Garfo na Caveira” teriam alcançado 3,16 milhões de pessoas, com 181 novos posts criados. A informação consta em um relatório semestral apresentado pela SQi para os clientes. Segundo o documento, a agência conquistou 21.029 novos seguidores no período. Entre abril e agosto de 2021, foram investidos R$12.232,73 no impulsionamento de posts na plataforma, aponta um relatório obtido pela reportagem.

    Objetivo alcançado: “esvaziar o discurso“ 

    Um dos coordenadores da campanha resume o trabalho: “Coisas assim que vão tirando o foco. Como a gente fez, por exemplo, com a greve geral. O Garfo [página “Garfo na Caveira”] abriu um território importante, de chegar de igual pra igual. E depois isso serviu pra gente ir esvaziando o discurso”.

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