Há 25 anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou a Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em Viena, capital da Áustria. Durante o evento, o MST denunciou as violações no campo brasileiro, a partir do documento “O Clamor dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil”.
A Conferência Mundial contou com participação de 171 Estados, 2 mil ONGs, reunindo ao todo cerca de 10 mil indivíduos durante 15 dias. Ao final, como síntese dos discussões, foi construído outro documento, intitulado de “Declaração e programa de Ação de Viena”. Esse texto foi considerado na época um marco para a luta pelos direitos humanos.
As denúncias realizadas pelo MST eram reflexos das desigualdades sociais no campo, pois o Brasil era campeão mundial em concentração de renda. Nesse período, os 10% mais ricos da população detinham 50% da riqueza nacional produzida.
É importante destacar, que nesse mesmo período, o país estava sob controle do governo de Itamar Franco (PMDB), que entregou as empresas nacionais para o capital internacional; com um congresso onde umas centenas de deputados já tinham notória reputação corrupta; e uma ditadura dos meios de comunicação, herança da ditadura militar de 64.
No campo, segundo dados de janeiro de 1995 do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, 73% da população rural brasileira vivia abaixo da linha de pobreza, 88% das terras nas mãos de 20% dos grandes proprietários e o analfabetismo alcançava 44,7%. Essa realidade foi denunciada pelo MST em 1993.
De acordo com Mara Carvalho, do setor de direitos humanos do MST, o texto denunciou a situação de fome e a pobreza que o povo brasileiro enfrentava na conjuntura de 1993 e na atualidade essas desigualdades, principalmente no âmbito jurídico e político, têm se acentuado. “Passados 25 anos, nos deparamos com situações que se agravaram, a exemplo do descumprimento e a violação da Constituição Federal de 1988; com o esvaziamento do papel do Estado por meio da crise de funcionamento de sua estrutura; e da deslegitimação dos seus agentes e instituições”, pontua.
Para ela, essas questões impactam diretamente na possibilidade da efetivação de direitos conquistados pelos trabalhadores e trabalhadoras na luta organizada. “A exemplo da aprovação da PEC 95, que congela os investimentos sociais e acentuam o aumento da desigualdade e da pobreza em nosso país”, explica Carvalho.
Um exemplo de violação aos Direito Humanos na atualidade é o aumento drástico da violência no campo. Só em 2017 foram 73 pessoas assassinadas. O número é 16,4% maior que em 2016, quando aconteceram 61 assassinatos, e quase o dobro de 2014, com 36 vítimas. A análise consta no relatório Conflitos no Campo Brasil 2017, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Sobre os desafios impostos aos trabalhadores do campo e da cidade na luta pelos Direitos Humanos, Carvalho afirma que o movimentos sociais organizados possuem um papel importante no debate e no fazer da luta. “Precisamos construir uma reversão nesse quadro de violações de direitos instaurado no Brasil, de forma a
superar o campo abstrato e idealista dos direitos humanos”. “Estamos caminhando para a marca dos 70 anos de proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no entanto, avaliamos que se faz importante
resignificar o tema, o debate e a garantia dos direitos, recolocando-o na centralidade da luta enquanto conquista social”, conclui.
Com olhar histórico sobre a luta dos Direitos Humanos desde 1993, a leitura do documento “O Clamor dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil” apresenta a necessidade, no âmbito da política e das lutas populares, de se contribuir a justiça social.
Confira o documento na íntegra:
O CLAMOR DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA DO BRASIL
Nós também temos Direitos Humanos
Falar dos direitos humanos dos trabalhadores rurais sem terra do Brasil é, sobretudo, falar sobre a possibilidade de sobrevivência, sobre o direito à vida, de aproximadamente 4,8 milhões de famílias que lutam para serem tratadas e respeitadas como gente.
1. NÃO É JUSTO que um país com dimensões continentais como o Brasil, com mais de 360 milhões de hectares em condições de produção agropecuária, existam 4,8 milhões de famílias sem o direito de trabalhar em sua própria terra.
2. NÃO É JUSTO que apenas 1% dos proprietários de terras – cerca de 46 mil latifundiários – sejam donos de 45% de todas as terras do país.
3. NÃO É JUSTO que grandes empresas multinacionais se apropriem de mais de 36 milhões de hectares, unicamente para fins especulativos ou para a exploração de matérias-primas.
4. NÃO É JUSTO que 46 grandes grupos econômicos sejam donos de mais de 22 milhões de hectares de terra e utilizem somente 6 milhões, empregando apenas 60 mil pessoas.
5. NÃO É JUSTO que milhões de trabalhadores não possuam terra para trabalhar enquanto cerca de 42% das terras dos latifundiários estão totalmente ociosas.
6. NÃO É JUSTO que 32 milhões de pessoas passem fome permanentemente no Brasil e somente 50 milhões de hectares estejam dedicados à lavoura de produção de alimentos. E ainda se dê prioridade àqueles produtos destinados à exportação.
7. NÃO É JUSTO que, nos últimos 20 anos, mais de 30 milhões de pessoas tiveram que sair de seus lugares de origem, migrar para os grandes centros urbanos e engrossar as fileiras dos marginalizados, em função da concentração da propriedade da terra.
8. NÃO É JUSTO que a maioria dos trabalhadores assalariados na agricultura ganhem menos do que um salário mínimo e tenham trabalho somente alguns meses durante o ano.,
9. NÃO É JUSTO que, aproximadamente 80% dos assalariados rurais não possuam a carteira de trabalho assinada e seus direitos trabalhistas reconhecidos.
10. NÃO É JUSTO que milhões de crianças camponesas, menores de 14 anos de idade, sejam obrigadas a faltar à escola para trabalhar na roça e a lutar pela sobrevivência.
11. NÃO É JUSTO que, para a maioria dos adultos do meio rural, lhes seja negado o direito de aprender a ler e escrever. Cerca de 44,7% da população camponesa do Brasil é completamente analfabeta. E, no nordeste, se somarmos os analfabetos com os que apenas concluíram o primeiro grau, esse índice sobe para 97,5% da população.
12. NÃO É JUSTO que milhares de boias frias sejam transportados diariamente para o trabalho em condições inumanas, piores que a dos animais quando vão para o abate e precisam preservar o peso
13. NÃO E JUSTO que seja negada, sistematicamente, para a maioria dos trabalhadores rurais, uma assistência médico-hospitalar decente.
14. NÃO E JUSTO que seja negado o direito a uma Pátria a mais de 100 mil camponeses brasileiros, quando se proíbe os Brasiguaios de retomarem ao Brasil.
Diante desse modelo econômico concentrador, injusto e explorador, que produz estruturas sociais com diferenças de direitos e poderes cada vez maiores, onde proliferam ainda infinitos casos de violações dos direitos humanos individuais e coletivos, embora a lei brasileira expressamente os garanta a todos:
15. DENUNCIAMOS a ocorrência de prisões de trabalhadores e lideranças, de forma ilegal e claramente perseguidora. Mesmo quando possuem mandado judicial (são raras as vezes), em geral trata-se de discriminação pelo fato de serem sem terra. E o tratamento discriminatório de juízes e delegados em relação aos grandes proprietários de terra quando estes violam a lei.
16. DENUNCIAMOS a ocorrência de vários casos de torturas físicas e psicológicas contra trabalhadores sem-terra presos (por exemplo, em Rio Brilhante/MS, Bagé/RS, Cascavel/PR e Mirante do Paranapanema/SP).
17. DENUNCIAMOS que, dos mais de 1.600 casos de assassinatos de trabalhadores rurais nas últimas três décadas, apenas 26 processos chegaram a ser julgados e, somente em 15, houve condenações. Mas apenas em dois casos os criminosos chegaram a ir para a cadeia (casos do assassinato Pe. Josimo e Chico Mendes) e mesmo assim, em ambos casos, os criminosos “fugiram” da prisão.
18. DENUNCIAMOS as ações de despejo que muitos juízes determinam contra acampamento dos sem-terra, sem respeitar as normas legais. Em muitos casos, os despejos são efetuados pela Policia Militar, sem nenhuma ação judicial prévia. Apenas atendendo aos interesses particulares do pretenso proprietário das terras.
19. DENUNCIAMOS a violência sistemática com que age a Polícia Militar e, em alguns casos, a Polícia Federal, contra os sem terra.
20. DENUNCIAMOS as ameaças de morte que sofrem as lideranças dos sem- terra e pessoas que os apoiam e a inércia da Polícia e da Justiça na apuração dos fatos.
21. DENUNCIAMOS a constante violação do direito de ir e vir dos sem terra, quando a Polícia cerca acampamentos e assentamentos, transformando-os em verdadeiros campos de concentração.
22. DENUNCIAMOS os mandados de prisão preventiva sem base legal, emitidos por alguns juízes, transformando-se em braços jurídicos do latifúndio contra lideranças do MST e dos trabalhadores.
23. DENUNCIAMOS as invasões das sedes do MST que ocorreram recentemente em Marabá (PA), Porto Alegre (RS) e Chapecó (SC), sem que as autoridades tenham tomado providência.
24. DENUNCIAMOS o não cumprimento de acordos e documentos assinados pelas mais altas autoridades federais e estaduais que se comprometeram a resolver problemas localizados dos sem-terra e não cumpriram nada do que assinaram.
25. DENUNCIAMOS a ação ilegal e sistemática dos serviços secretos(os chamados P-2) da Polícia Militar, que somente podem atuar como proteção da própria corporação e, no entanto, atuam contra o MST. Perseguem as lideranças, vigiam, fazem escuta telefônica, ameaças, etc.
26. DENUNCIAMOS as péssimas condições de trabalho que existem na maior parte das fazendas brasileiras, especialmente nas usinas de açúcar do nordeste, onde os boias-frias vivem em condições sub-humanas.
27. DENUNCIAMOS o Governo pelo descumprimento da Constituição Federal que determina a expropriação imediata de todas as áreas com plantio de maconha e seu destino à reforma agrária. São dezenas de casos encontrados pela Polícia Federal, mas até hoje não foi expropriada nenhuma dessas áreas.
28. DENUNCIAMOS a situação ofensiva à dignidade humana que é imposta a milhões de camponeses que vivem no semi-árido nordeste, onde a água foi privatizada pelos latifundiários que construíram poços e açudes com dinheiro público em suas terras, enquanto milhões passam fome e sede.
29. DENUNCIAMOS os desvios de recursos públicos através de mecanismos de corrupção praticados no país, que faz com que recursos destinados a projetos para os trabalhadores rurais não cheguem a seu destino ou cheguem esfacelados.
30. DENUNCIAMOS o sistema eleitoral brasileiro que admite e não pune a corrupção eleitoral, a compra de votos, o uso do patrimônio público em favor dos candidatos das elites. Entretanto, a responsabilidade pela violação dos direitos humanos não é apenas conseqüência da estrutura econômica e social injusta existente em nosso país.
Por isso:
31. RESPONSABILIZAMOS o Poder Judiciário brasileiro como um organismo parcial que não aplica a lei de forma igual para todos. A democratização do Poder Judiciário é condição para a implantação da democracia no Brasil.
32. RESPONSABILIZAMOS o Governo Federal, através de seus vários ministérios e organismos executivos que desrespeitam sistematicamente os direitos dos trabalhadores rurais.
33. RESPONSABILIZAMOS os Governos Estaduais e sua Polícia Militar que atuam claramente contra os trabalhadores.
34. RESPONSABILIZAMOS as oligarquias rurais, os grandes proprietários de terras, que se mesclam com os grandes comerciantes, industriais e banqueiros para garantir a perpetuação de uma estrutura de concentração da terra injusta. E tiram o pão de cada dia de milhões de trabalhadores.
35. RESPONSABILIZAMOS certos setores da imprensa brasileira que, mais atentos aos seus lucros de publicidade, ficam calados diante de tantas arbitrariedades. Normalmente abrem seus espaços para calúnias e inverdades contra os trabalhadores rurais.
36. RESPONSABILIZAMOS os organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, que impõem políticas econômicas e projetos que contribuem para a maior marginalização dos trabalhadores rurais. Especialmente através da dívida externa.
37. RESPONSABILIZAMOS os grandes grupos econômicos, alguns multinacionais, que se apropriam de terras apenas para especulação e mantém imensas áreas ociosas, impedindo o acesso dos trabalhadores à terra.
Esse é o clamor que o MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST) traz aos diversos fóruns nacionais e internacionais dos direitos humanos. Para que fique claro que, no Brasil, não existe uma verdadeira democracia. Para que fique claro que existem milhões de brasileiros que vivem em condições sub-humanas, impostas por uma minoria que controla o poder econômico, político, judiciário e o poder de informação.
Mas temos a esperança dever, um dia, a justiça social implantada em nosso país e um BRASIL para TODOS os brasileiros.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA
São Paulo, maio de 1993