Por Tiago Miotto. Cerca de 400 indígenas, representando mais de 30 povos de todas as regiões do Brasil, reuniram-se na última sexta-feira (27/11) no auditório Juscelino Kubitschek, na sede da Procuradoria-geral da República, para participar da audiência pública sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 e a demarcação de terras indígenas no Brasil. A audiência foi promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), que já se manifestou contrário à aprovação da PEC.
Depois que a Comissão Especial formada para analisar a PEC 215 na Câmara dos Deputados aprovou o relatório apresentado pelo deputado Osmar Serraglio (PMDB), em 27 de outubro, sua tramitação avançada e o risco iminente de aprovação têm forçado a mobilização e a articulação de lideranças indígenas e apoiadores das causas indígena, quilombola e ambiental.
Além disso, o relatório aprovado pela Comissão em outubro torna a PEC 215 ainda mais radical na proposta de aniquilamento de direitos dos povos indígenas, acrescentando à proposta original, de transferência das demarcações do Executivo para o Legislativo, dispositivos como o marco temporal, segundo o qual só é tradicional o território que estivesse sob ocupação indígena na data de 5 de outubro de 1988, o que desconsidera todas violações sofridas pelos povos indígenas durante e antes da Ditadura Militar.
Em meio a esse cenário de ataques cada vez mais intensos contra os direitos dos povos tradicionais por parte de setores dos três poderes da República e de poderosos grupos econômicos, questões paralelas à PEC 215, como a CPI da Funai e do Incra e a CPI do Cimi, no Mato Grosso do Sul, também foram abordadas por muitas pessoas durante o debate.
A duração da audiência, que começou às 14h e só terminou depois das 20h, indica a extensão dos problemas que os povos originários enfrentam no Brasil hoje, mas também a força da resistência e a capacidade de articulação destes povos.
Com mediação da subprocuradora-geral da República e coordenadora da Câmara de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais Deborah Duprat, a mesa foi composta em dois momentos diferentes, com a finalidade de contemplar lideranças indígenas, representantes de entidades indigenistas e ambientalistas, além de integrantes da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas, que enfrenta a bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia) na Câmara dos Deputados.
Ao longo da tarde, dois microfones nas laterais da mesa foram abertos para que os indígenas que não participavam das mesas tivessem a possibilidade de se manifestar, e grandes filas se formaram dos dois lados do auditório. Em meio a saudações em línguas diversas, relatos de violências sofridas e a busca de articulação entre os parentes, uma palavra de ordem era constantemente repetida e agitava os que ocupavam os assentos: PEC 215 não!
Entre os vários aspectos criticados na PEC 215, sua flagrante inconstitucionalidade foi um ponto bastante ressaltados por todos os debatedores e debatedoras. “O Supremo Tribunal Federal diz o seguinte: ‘eu não vou suspender a tramitação da PEC, eu vou deixar que o Congresso cometa, se quiser, todos os erros possíveis. Mas eu adianto: a PEC é inconstitucional’”, afirmou a subprocuradora-geral da República Deborah Duprat.
“Se temos os sinais de que a PEC 215, se passar, será considerada inconstitucional, os danos no meio do caminho podem ser imensos”, disse o presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Antonio Carlos de Souza Lima. Ele também destacou o processo de criminalização que a categoria dos antropólogos vem sofrendo por parte da bancada ruralista, na CPI da Funai e do Incra, com a finalidade de deslegitimar os relatórios técnicos produzidos por esses órgãos, sustentando que haveria fraudes nos laudos de reconhecimento territorial.
“A instalação de uma CPI contra a Funai e contra o Incra nesse momento não é uma CPI contra o mau funcionamento da Funai e do Incra, para que haja um melhor funcionamento desses órgãos para os povos indígenas e quilombolas. É uma CPI para dizer que o que se produziu em termos de terras indígenas e de terras de quilombos é fraudulento, é passível de criminalização e aqueles profissionais que produziram esses documentos, os antropólogos, são passíveis de serem criminalizados”, afirmou o presidente da ABA, para quem o momento é de cautela. “Todos nós gostaríamos de acreditar que isso é apenas terrorismo. Mas para quem já viveu certo tempo da vida no Brasil, a gente tem que estar sempre atento à possibilidade do retrocesso”.
Para a advogada indígena Wapixana Joênia Carvalho, que também compôs a mesa, a PEC 215 reforça o racismo contra os povos indígenas e as comunidades quilombolas no Brasil. “Antigamente, ainda havia um mascaramento do que se pensava, do que se falava a portas fechadas. Hoje eu vejo a PEC colocar na mesa de forma bem clara esse racismo contra os povos indígenas”.
Ela iniciou sua fala lembrando as lideranças assassinadas este ano e questionando: “Cadê a justiça em nosso país? Cadê o processo de demarcação das terras que não foram concluídas? Enquanto há mortes, há violência, por outro lado há uma aceleração para reverter todas essas garantias constitucionais”.
Joênia Carvalho foi a primeira indígena a fazer uma sustentação oral no STF, na época da luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e apontou a continuidade entre estes dois momentos da história recente do Brasil. “Quando a PEC nasceu, foi a partir de Roraima. Ela partiu justamente porque queriam frear a demarcação da Raposa Serra do Sol. Ela veio justamente querer desfragmentar o laudo antropológico, criminalizar lideranças indígenas que lutavam, ela queria mostrar aqui dentro do Congresso Nacional que se poderia mudar a Constituição”.
Na avaliação de Gilberto Vieira dos Santos, secretário-adjunto do Cimi, a PEC 215 tem dois objetivos, que foram aprofundados com o novo relatório: impedir a demarcação de cerca de 600 terras indígenas – entre demarcações que foram iniciadas, mas que ainda não foram concluídas, e terras reivindicadas sem qualquer processo demarcatório iniciado – e abrir a possibilidade de exploração das terras indígenas já demarcadas.
“A PEC também quer atingir esses territórios já demarcados, quando abre a possibilidade da chamada exploração indireta, que é acabar com o usufruto exclusivo que está na Constituição, e abrir para que haja arrendamento, para que haja exploração, para que haja a possibilidade de empreendimento dentro das terras indígenas sem ouvir as comunidades”, afirmou.
Para Ela Wiecko, Vice-procuradora-geral da República, somente uma luta em diversas frentes pode consolidar os direitos assegurados na Constituição Federal. “Infelizmente os direitos que a gente diz que foram assegurados pela Constituição de 1988 não estão consolidados. A Constituição, por si, ela não foi suficiente. A lei não é suficiente. No fundo, há um conflito de modelos econômico, político e jurídico que não foi superado, e esse conflito de modelos não se resolve em mesas de conciliação. Ele se resolve na luta”.
Muitos dos indígenas e debatedores presentes à mesa concordaram que a estratégia de presença constante de delegações indígenas em Brasília têm sido essencial para barrar o avanço da PEC 215 e de outras medidas contrários aos direitos originários dos povos indígenas.
“A gente não está conseguindo avançar, mas eles também não estão, porque a nossa presença aqui tem travado muita coisa. E a própria PEC 215 não está completamente aprovada por conta da nossa presença aqui em Brasília. O maior símbolo de resistência é a nossa existência e a nossa presença aqui”, afirmou Sônia Guajajara, representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
A disposição para lutar por seus direitos, apesar das dificuldades que enfrentam para vir até a capital federal, foi manifestada por diversos dos indígenas presentes no espaço. “Não é fácil você sair lá da base, como eu, que vim do Pará para cá”, relatou Welton John Oliveira Suruí, liderança do povo Aikewara (também conhecido como “Suruí do Pará”), no sul do Pará, que esteve preso durante 35 dias em Belém depois de participar da organização de protestos por melhores condições para seu povo. “Ano passado, nesse período e nessa época, eu estava preso em Belém. Perseguição política, porque sou um jovem que nasci na luta e não me vendo por dinheiro nenhum. Nós estamos aqui dando um grito de guerra, contra todas essas leis que estão criando contra nós. Os meus filhos, na aldeia, quando eu saio, ficam preocupados comigo, mas ficam também honrados porque sabem que eu estou aqui lutando pelo bem deles futuramente”.
A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, chamou a atenção para o fato de que a articulação capitaneada pela bancada ruralista e outras forças econômicas, como a da mineração, é no sentido de inserir terras preservadas dentro do circuito de exploração econômica. “O ataque deles é em relação a todas as terras que ficam fora do mercado. Eles querem as terras para a exploração econômica. É uma luta que começa com os indígenas, vai para os quilombolas, e a CPI contra a Funai e contra o Incra é prova disso, vai para as unidades de conservação, que também são objeto de um dos apensos da PEC 215, e vai contra a reforma agrária. A luta deles é para eles manterem esse modelo econômico. Como eles dominam esse país há 515 anos, vocês imaginam o tamanho da luta. É a luta de vocês, da vida toda e de várias gerações. Essa foi uma reunião importante de articulação, mas a luta continua até a PEC cair”.
Foto: Reprodução/CIMI
Fonte: CIMI