Por Guigo Ribeiro, para Desacato.info.
Lá ia o rapaz satisfeito pela rua que nunca havia passado. Sentia enorme alegria pela
descoberta de novos caminhos. O cotidiano lhe era algo prazeroso. Por vezes, leve. Mas
isso não é importante.
Completou a curva e deu de fucinho com cachorro correndo como publicitários os põe
para correr e vender ração. O dog aparentava a felicidade que achamos que eles sentem
e sua língua, em decorrência da bocona aberta, batia em suas orelhas, deixando a baba
escorrer. Neste magnífico encontro, a alegria e o susto. Uma loira vinha atrás do bicho
em sua corrida lenta pela idade e peso das joias em uso. Titim tirim. Entenda isso como
o som das jóias.
– Moço… eu não alcanço. Não consigo correr. Se perco esse cachorro, me matam. –
fazendo cara de tadinha.
O rapaz vivia dias de herói. Buscaria o cachorro e pensaria depois que, sim, vivia dias
de herói. Lembrou que socorreu um senhor caído num canto com um fio de baba
imenso. Tinha convulsionado e por uma hora, esperou a ambulância, enquanto
passantes passavam, paravam e passavam. Mas isso não é importante agora.
O rapaz ouviu o lamento da loira e foi ser herói. Se virou rumo à ladeira que o cachorro
foi e correu, desconsiderando o menisco e o desgaste do joelho esquerdo. De longe viu
o bicho entrando num hospital (!) não sem antes ver um sujeito humilhantemente
driblado com as mãos abertas:
– Tentei. Mas o bicho fez uma cara de bravo…
E a loira no passinho das biju e seu titim tirim se lamentando:
– Me ajuda! Por favor! – fazendo cara de tadinha.
O rapaz adentrou o hospital e ensaiou um orçamento de consulta. Um segurança sorriu
ao perguntar:
– Tá atrás do cachorro? – gentil.
O rapaz sorriu e fez que sim. E o segurança apontou para uma família loira e rindo para
o bicho acuado num canto. O rapaz pensou em ir para perto do bicho, entretanto
considerou missão realizada ao ouvir a loira vindo e rindo para a família loira:
– Lindos… muito obrigado! Vocês são muito gentis. Gratidão. – fazendo cara de tadinha
emocionada.
A família loira riu e a loira tentou abaixar para ajustar qualquer coisa na coleira do dog.
Lembrou das costas e pediu ajuda. Membro por membro da família loira empregou
esforços para ajustar qualquer coisa na coleira. Sem sucesso. O segurança, gentil, se
abaixou e tentou. A loira ríspida:
– Não! Não! Faz direito! Eu ESTOU falando e você me escuta. É ali! Ali! Vai logo,
cara! – como se o segurança fosse sua propriedade.
Sinhazinha. Sorrindo para os seus loiros e tratando o segurança como seu servo. O rapaz
que correu atrás do bicho pediu perdão ao seu joelho pelo desrespeito. Olhou aquela
cena e partiu. No caminho, ódio. Ódio ao pensar a loira fazendo cara de tadinha, rindo
para os seus e tratando o segurança como seu servo. O rapaz percebeu também que nem
um muito obrigado havia recebido. Deu mais alguns passos e concluiu:
– Quem dera o bicho ser racional. Ia pedir pra ele correr até o inferno! E pedir que ele
gritasse com força; não me toquem; pra toda mão que ousasse tentar. Pra ninguém
mexer. Pra loira correr até o inferno. E, quando o dog resolvesse parar, que mordesse
aquela sinhazinha bem no cu!
Imagem de capa: Cena do filme “A dama do cachorrinho”, baseado na obra homônima de Anton Checkhov com a atuação de Anna Sergeievna (1960).
Guigo Ribeiro é ator, músico e escritor, autor do livro “O Dia e o Dia Que o Mundo Acabou”, disponível em Edfross.
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