A indústria do cigarro ainda sufoca os cofres públicos e não quer pagar a conta

Valor arrecadado com impostos pagos pelo setor cobre apenas 10% das perdas sociais e econômicas do país em decorrência do fumo

Reprodução: O Joio e o Trigo

Por Lu Sudré, para O Joio e O Trigo.

Centenas de vidas perdidas diariamente, graves danos econômicos e fortes impactos na saúde pública. Ainda que ao ler tais frases, o primeiro pensamento possa remeter à pandemia do coronavírus, elas também retratam o rastro da indústria do cigarro no Brasil.

Números jogam luzes nessa situação. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), 443 pessoas morreram por dia em razão do tabagismo em 2020 no Brasil. As mais de 161 mil mortes evitáveis correspondem a 13% do total de óbitos registrados anualmente.

Além da alta letalidade, os custos dos danos produzidos pelo cigarro na saúde e na economia também são gigantes: R$ 92,73 bilhões, o equivalente a 1,8% de todo PIB brasileiro.

Desse total, mais de R$ 50,28 bilhões referem-se aos custos diretos do sistema de saúde. Já os outros R$ 42,45 bi são consequência da perda de produtividade no trabalho, o valor que o país deixa de arrecadar pela morte prematura da população ativa e para arcar com aposentadorias decorrentes de doenças atribuíveis ao tabaco.

Esses valores foram apresentados pelo Institución Académica Facultad de Medicina de la Universidad de Buenos Aires (Iecs), da Argentina, a partir de pesquisa feita com 40 pesquisadores de universidades, centros de estudos e entidades públicas de diferentes países, incluindo o Inca e a  Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que já havia estimado que os impactos do tabagismo custavam R$ 57 bilhões aos cofres públicos em 2015. Ou seja, houve um crescimento de aproximadamente 62% em 5 anos.

novo levantamento do Iesc também aponta que, se considerado o custo do tempo que familiares e pessoas próximas dedicam ao cuidado das vítimas do tabagismo, mais R$32,4 bilhões devem ser adicionados ao total. Sendo assim, o atual custo econômico e social do fumo chega a R$ 125,15 bilhões, o equivalente a 23% do que o Brasil gastou em 2020 para enfrentar a pandemia.

Embora as cifras sejam enormes, a responsabilização da indústria do tabaco pelos danos coletivos é mínima. A arrecadação de impostos na venda de cigarros, por exemplo, é de aproximadamente R$12 bilhões anuais, o que cobre somente 10% dos custos econômicos totais.

Há, entretanto, uma saída clara e bem-sucedida em outros países  para atenuar os impactos dessa conta que não fecha e que cresce exponencialmente. A política de aumento de preços e impostos sobre produtos do tabaco, defendida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Banco Mundial há décadas.

Tânia Cavalcante, presidente-executiva da Comissão Para o Controle do Tabaco do Inca, explica que o aumento dos impostos pressiona diretamente o preço, que, em um efeito cascata, impacta diretamente o consumo.

“Quando sobe o preço real do cigarro, cai o consumo.  Não é uma lei da física, mas é uma lei da economia. Aumentou o preço, reduz o consumo. Existe uma forte oposição a esse tipo de política por parte das empresas, fabricantes transnacionais como a British America Tobacco, a Phillip Morris e a Japan Tobacco. Quem quer pagar mais imposto? Pagar mais imposto significa reduzir lucros. Só que enquanto os lucros dessas empresas são estratosféricos, elas deixam para o país uma conta enorme”, afirma Tânia.

A eficácia da medida prevista por um dos artigos centrais da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), da qual o Brasil e outros 181 países são signatários, também é exaltada pela Tobacconomics, uma frente de colaboração entre pesquisadores internacionais que estudam a economia das políticas de controle do tabagismo e que tem sinalizado há quase três décadas o que funciona (ou não) para a redução do fumo.

Em relatório publicado no ano passado, denominado “Avaliação Comparativa de Impostos sobre Cigarros da Tobacconomics”, os especialistas analisaram o desempenho das políticas tributárias sobre o tabaco em nível global, a partir de uma escala de cinco pontos com base em quatro componentes-chave: a estrutura tributária em si, o preço dos cigarros, a carga tributária sobre o preço de varejo e mudanças na acessibilidade a esses produtos ao longo do tempo.

A pontuação brasileira apresenta média geral de 2,18 e deixa muito a desejar em todos os índices. Apenas quatro países tiveram pontuação maior ou igual a 4, sendo eles Equador, Reino Unido, Nova Zelândia e Austrália. Os dois últimos lideram o ranking com pontuação de 4,63.

Segundo a Tobacconomics, a melhor forma para conseguir tributar os cigarros eficazmente é por meio de um imposto de consumo específico que represente pelo menos 70% do preço de varejo e seja atualizado automaticamente para permanecer à frente da inflação e do crescimento da renda.

E é justamente com impostos de consumo específicos, elevados e acompanhados por aumentos regulares que alguns países têm reduzido expressivamente a acessibilidade ao tabaco, uma consequência direta dos altos preços.

Conforme classificação da plataforma Numbeo, o cigarro mais caro do mundo é da Austrália. Por lá, um maço Malboro custa US$ 25,71, aproximadamente R$134.  A diferença é brutal em comparação com o Brasil, onde o mesmo produto custa US$ 2,11, cerca de R$11. Com o valor que se compra um maço de cigarro no país da Oceania, é possível comprar até 12 maços por aqui.

A Austrália aumenta os impostos sob o produto em 12,4% ao ano desde 2013, além de incrementos semestrais vinculados ao aumento dos salários ou da inflação que acontecem desde 2014. Há 11 anos, a Nova Zelândia também aumenta o imposto sobre o cigarro em pelo menos dez por cento, mais a inflação, em todo mês de janeiro. Na Europa, o Reino Unido desenvolveu um sistema misto que conta com a tributação de aumento anual automático, um componente ad valorem – taxa calculada por uma porcentagem do valor da mercadoria, com base nos preços de varejo e incrementos adicionais, além da inflação.

Apesar dos bons exemplos, o relatório da Tobbaconomics atesta que a maioria das nações  não está conseguindo tributar os cigarros de forma eficaz, já que quase a metade dos 170 países atingiu menos de dois dos cinco pontos máximos, com poucos avanços nos últimos anos.

Outro argumento central apresentado pelas organizações de saúde é que a política de  tributação tem maior alcance nas populações mais pobres, onde se concentra a epidemia do tabaco. Diante dos altos preços, os fumantes têm maior probabilidade de reduzir o uso, incluindo jovens de baixa renda que são ainda mais sensíveis aos aumentos do que adultos. Esse ponto, em particular, é visto como um grande benefício, considerando que parcela expressiva de usuários do tabaco começam a fumar durante a adolescência ou juventude, renovando a clientela da indústria por gerações.

Lobby acima de tudo, lucro acima de todos

Apesar do atual cenário ruim, a política de aumento de preços e impostos sobre produtos do tabaco trouxe ótimos resultados ao Brasil nas últimas décadas, junto com a proibição para fumar em ambientes coletivos e fechados, advertências sanitárias e investimento em campanhas e programas para cessação do tabagismo.

Aproximadamente 35% da população brasileira acima de 18 anos fumava em 1989, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde. Em 2006, o índice registrado pelo  sistema Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), já era consideravelmente menor, 15,7%.

A Lei 12.546, sancionada em 2011, alavancou a política antitabagista ao reestruturar o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para cigarros e instituir um preço mínimo pela primeira vez.

Um estudo publicado um ano depois da mudança e feito a partir da modelagem SimSmoke, aplicada internacionalmente para avaliar o impacto da Convenção-Quadro nos países signatários, mostrou que 50% da redução do tabagismo registrada entre os brasileiros foi atribuída à política tributária.

Anos depois, em 2016, o decreto nº8.656 alterou artigos que regulamentavam a lei definindo uma nova alíquota de 66,7% e elevando o preço mínimo do maço de cigarros para R$5. No site do Inca, é possível encontrar os valores detalhados das taxas.

Esse, no entanto, foi o último aumento imposto pelo Estado brasileiro que, desde então, paralisou o avanço da política, influenciado pela pressão do setor do tabaco, como mostrou reportagem publicada em  O Joio e O Trigo.

Por décadas, a indústria do tabaco e organizações que as representam alegam que a elevação de impostos é danosa por supostamente impulsionar o mercado ilegal de cigarros, já que o preço do produto contrabandeado em comparação com o legal é menor.

Para isso, o setor apresenta estimativas divulgadas periodicamente pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) – mantido por um grupo de empresas da área do fumo, refrigerantes, cervejas e combustíveis. A principal missão do instituto é combater o que as corporações consideram como “concorrência desleal”.

Em 2019, o comércio ilegal teria representado 57% do mercado. Em 2020, 49% de todos os cigarros consumidos no país. A queda é justificada pela alta do dólar em meio à pandemia, o que teria aproximado o valor do cigarro contrabandeado do legal.

A narrativa propagada também pelo  Fórum Nacional de Combate à Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), que tem entre os associados empresas fabricantes de produtos de tabaco, é refutada por dados oficiais.

Resultados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, do IBGE, por exemplo, mostram que a prevalência do consumo de cigarros ilegais entre fumantes foi de 34,7%, uma porcentagem consideravelmente menor da alardeada pela indústria naquele ano.

Outro artigo publicado recentemente pelos pesquisadores André Szklo, do Inca, e Roberto Iglesias, ex-coordenador da Unidade de Economia do Controle do Tabaco da OMS  economista em tributação de tabaco e alimentos não saudáveis e em temas de comércio ilícito de tabaco referências na área, também trouxe à tona a interferência da indústria do tabaco sobre as informações do consumo de cigarro no país.

Os autores condenam o fato de que a indústria ignora determinantes macrossociais importantes, como o aumento da capacidade econômica para comprar maços no mercado legal, que cresceu sistematicamente entre 2016 e 2019, passando de 412 maços/mês para 460 maços/mês. Enquanto a indústria se diz prejudicada, na verdade, está vendendo mais.

“Se existe mercado ilegal, a culpa não é do imposto, a culpa é das empresas. Se hoje ainda temos um número elevado de fumantes, uma concentração de crianças começando a fumar, principalmente nas populações de menor renda e escolaridade, isso se deve às fabricantes. É um jogo pesado que visa unicamente o lucro”, enfatiza Tânia Cavalcante, estendendo a crítica a parlamentares que defendem e se aliam ao discurso das empresas.

“Nossa proposta é que as empresas que criam o problema, o contingente de fumantes, contribua legalmente e não por acordos voluntários, para coibir, para mitigar, os enganos que ela causa”.

Luiz Augusto Maltoni, diretor-executivo da Fundação do Câncer, ressalta que o aumento da carga tributária é ainda mais urgente para o momento de enfrentamento à pandemia e reconstrução pós-covid. 

“Um dos objetivos da taxação é fazer com que o aumento reduza-se o consumo, e, ao mesmo tempo, que possamos ter recursos para financiar o sistema de saúde que precisa de um financiamento ainda maior. Sabemos como as doenças do tabaco relacionadas agridem o sistema de saúde”, reitera o cirurgião oncológico.

A Fundação do Câncer é a representante brasileira no Prevent20, uma coalizão global de grupos de câncer lançada em dezembro do ano passado, com o objetivo de transmitir a  mensagem de que a maior taxação do tabaco é a forma mais efetiva de prevenir os cânceres relacionados ao fumo.  O uso de cigarros pode levar ao desenvolvimento de 14 tipos de neoplasias malignas.

De acordo com a iniciativa liderada pela American Cancer Society, dos Estados Unidos, o tabaco responde por 20% do total de mortes globais por câncer, ou seja, um em cada cinco óbitos de pacientes oncológicos é em decorrência do cigarro.

Propostas na mesa

Organizações da área da saúde têm se empenhado para que a discussão de reforma tributária em curso na Câmara dos Deputados e no Senado seja uma oportunidade de mitigar o atraso na política de preços. Algumas propostas já foram apresentadas para  maior maior taxação dos produtos não saudáveis, o que também inclui o setor de bebidas açucaradas.

Um deles é o Projeto de Lei Complementar 4/2015 que tramita na Câmara e propõe a criação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre a fabricação ou a importação de tabaco para o custeio do tratamento de vítimas do tabagismo.

A Cide é considerada um bom instrumento pela arrecadação vinculada e por ser um tributo de competência exclusiva da União. Isso significa que a alocação dos recursos será destinada a uma área específica, no caso, o tratamento de pessoas que desenvolveram doenças relacionadas ao cigarro.

O imposto seletivo também está previsto na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 e  110/2019, analisadas agora pelo Congresso. Para colaborar com o debate, a ACT Promoção da Saúde tem publicado notas técnicas esmiuçando como a legislação poderia ser adaptada para alcançar os êxitos de uma maior tributação.

A sinalização do governo federal é, nesse momento, aprovar na Câmara a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e a reforma do Imposto de Renda com taxação de dividendos. Ficaria nas mãos do Senado a criação de um imposto seletivo que viria a substituir o atual IPI.

Tania Cavalcante pondera ser imprescindível garantir a vinculação de parte da arrecadação dos tributos para implementação plena da Convenção-Quadro por meio do fortalecimento de programas de cessação do fumo, mais ações preventivas em escolas, assim como investimentos em campanhas nacionais nos canais das grandes mídias e nas redes sociais alertando para os riscos do tabaco

Alguns outros pontos que ela destaca é a destinação de recursos para a implementação plena do Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco, também previsto no tratado, e o oferecimento de alternativas economicamente viáveis aos produtores de folhas de fumo.

“O protocolo seria um meio para conscientizar e oferecer alternativas para que a transição do cigarro legal para o ilegal não ocorra. Mesmo que a “transferência” relatada pelos órgãos oficiais seja bem menor do que os números da indústria, é preciso considerar o vício desenvolvido pela nicotina de cada indivíduo e manter medidas de mitigação em qualquer cenário”, ressalta Tânia.

Na opinião da pesquisadora do Inca, também seria benéfico assegurar que o imposto específico seja regressivo, o que faria com que marcas mais baratas pagassem taxas maiores, nivelando o preço dos maços de diferentes marcas em altos valores.

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