A geopolítica do ‘anticristo’ e a queda do “mundo livre”. Por Rafael Bautista Segales

As reflexões sobre a colisão exponencial desencadeada em Gaza, que já deslocou em importância o impasse geoestratégico da OTAN na Ucrânia, e as profundas perturbações que a ameaça de encerramento do Mar Vermelho, para além do recente assalto, suscitam uma ameaça nos corredores de abastecimento global, além do recente assalto “democrático” na Argentina. Abordagem para um exame meta-geopolítico.

Foto da obra de Paulo Slachevsky: Civilização ou Barbárie

Escreve Rafael Bautista Segales – Especial para www.purochamuyo.com

Mafia used to say it’s nothing personal

Iniciaremos, de forma introdutória, a abordagem de um exame metageopolítico que consideramos necessário para ultrapassar limites analíticos que envolvem todos os tipos de análise fenomênica.

As análises geopolíticas costumam ser reduzidas a uma fenomenografia dos cenários, pois estes se manifestam na percepção de quem investiga dados e referências. Mas isto, que reduz uma descrição analítica a uma história jornalística, faz com que a geopolítica apareça apenas como uma descrição cenográfica do desdobramento táctico de magnitudes opostas de poder.

Ora, tendo em conta que a reflexão geopolítica requer um compêndio multidimensional de recursos analíticos e reflexivos, porque é uma reflexão de natureza estratégica, convém clarificar e clarificar o próprio núcleo que gera qualquer encenação fenomenal de natureza geopolítica. Isto é, o que queremos dizer quando falamos, não apenas de poder puro, mas de poder estratégico e, mais ainda, de poder profundo, quando passamos a descrever uma colisão geopolítica exponencialmente global, como aquela que começou a emergir de Gaza?


De ambos os lados, o poder que se desenvolve tem um carácter estratégico, não só porque os atores não se limitam aos directamente opostos ou pelos interesses envolvidos, mas porque o que é implantado às escondidas, no caso da geopolítica imperial (já seja em sua decomposição ou recomposição), é a própria fisionomia de uma vontade última que se expressa como um poder profundo.

Se for possível perceber um Deep State a partir do Deep State, este último é aquele que concentraria o Deep Power. Por exemplo, a partir do cenário desencadeado na Ucrânia e em Gaza e do assalto “democrático” na Argentina, podemos assumir que ocorreu um golpe de Estado sem precedentes dentro do “Estado profundo”. Sendo uma transferência ilegítima de poder (ou seja, sem qualquer mediação democrática, nem mesmo formal), o cenário abriu uma figura sinistra na composição estrutural do poder global, ou seja, um deslocamento de poder para uma concentração nunca antes percebida.

Já não é o Império-Estado-Nação ou o complexo militar-industrial que puxa os fiozinhos do teatro mundial. São agora os fundos de investimento Vanguard e BlackRock (e a sua obscura e profunda composição orgânica de capital global) que acabaram de deslocar o Império que conhecíamos no século XX. O complexo financeiro (que além de militar é mediático e na sua composição concentra a máfia global do lawfare, do healthfare e do foodfare) precisa atacar tudo para nos deixar a todos, estados, mundo e sociedades, sem nada. Desta forma, o novo ciclo de acumulação pretendido torna-se transparente: já não está interessado em controlar os conflitos que desencadeia, mas sim na dívida que esses conflitos produzem.

Agora, por que uma geopolítica como a fenomenografia não poderia esclarecer isso?

Porque se toda fenomenologia tem como limite a referência ao ser do fenómeno, uma descrição fenomenográfica limita a reflexão geopolítica ao horizonte de mundo dado e estabelecido, embora em colapso civilizacional. Assim, quando falamos preliminarmente sobre meta-geopolítica, nos referimos a um exame reflexivo para além do sentido do mundo que desenvolve essa vontade última. Sendo este que desenvolve, de forma multidimensional, as suas possibilidades, no tipo de mundo que enquadra as habituais análises geopolíticas.

Só assim (saber situar-se, epistemologicamente e existencialmente, naquilo que está além do sistema-mundo) é possível, acreditamos, compreender e tornar visíveis outros tipos de possibilidades teóricas e práticas de natureza estratégica, que transcendem os enquadramentos impostos, mesmo cognitivamente, por isso já está pressuposto na percepção geopolítica habitual.

Acontece que os procedimentos analíticos podem descrever tudo, mas nunca o locus intelectual a partir do qual todas as descrições fizeram sentido. Este permanece como o panóptico que tudo vê, mas não se vê, ou seja, permanece como o olho do observador de toda descrição, mas nunca sujeito à descrição. No nosso caso, o locus de enunciação, o lugar existencial de onde emerge a crítica a uma geopolítica de libertação, sempre se manifestou, sendo o poder popular e as suas capacidades estratégicas de irradiação que estabelecem a relevância da reflexão analítica de carácter geopolítico que levar a cabo.

Nesse sentido, uma metageopolítica deve ter como objetivo mostrar o tipo de poder (seus graus de concentração e intensidade) que, no seu desdobramento estratégico, configura cenários que devem ser detalhados para indicar os rumos prováveis ??e possíveis que se apresentam, gerando assim uma consciência estratégica antecipada nos nossos projectos de libertação. Então, entrelaçando vetores multidimensionais de reflexão analítica, podemos perceber que o tipo de poder profundo que se desdobra como a vontade última do sentido do mundo em pleno declínio está expressando, em sua reposição desesperada, a ameaça suicida de acabar com tudo, dada a grau de concentração de poder que possui, jogando todas as opções em todos os sentidos e apostando todos os efeitos e consequências que significa apostar tudo (mesmo o que não lhe pertence).

Essa vontade última luta por tudo e aposta tudo, não se interessa por nada mas por tudo, por isso, no seu colapso, luta para que nada fique. É expresso racionalmente, mas produz irracionalidades. Podemos chamar isso de racionalidade da morte. Quando nos referimos à crise civilizacional como uma crise de racionalidade, queremos também salientar que não se trata de conflitos sistémicos num mesmo cenário. Se for verdade que o velho mundo se recusa a desaparecer e o novo mundo demora a nascer, o conceito limite do mundo mal serve para descrever a forma como o velho mundo resiste.

E, se falamos de mundo, o fim do velho mundo envolve também o fim de todo o seu sistema de crenças e valores que, formalizado como racionalidade hegemônica global, é o que se desencadeia como resistência existencial de todos os atores envolvidos e dependente do mundo que morre


A incapacidade de nos imaginarmos noutro tipo de mundo, seja multipolar ou de equilíbrios mais democráticos, é uma das razões que justifica escrutinar o tipo de vontade transformada em poder global que se expressa em apostas mesmo abertamente genocidas que, exponencialmente, apontam para um novo holocausto, mas agora de natureza global.

A derrocada do moderno desenho geopolítico centro-periferia e a actual inviabilidade da ordem unipolar que este desenho pressupõe, manifesta o tipo de tradição e projecto imperial a que a própria modernidade responde, actualizando a categoria geopolítica do Ocidente como a mais pertinente para estabelecer , na sua verdadeira dimensão, que tipo de mundo é esse que entrou em crise crónica e apostando todo o arsenal de recursos tácticos e estratégicos, míticos e ideológicos que possui – cultural e historicamente -, para evitar o seu colapso existencial e civilizacional.

O centro das atenções deveria então mudar, ou melhor, aprofundar-se, mostrando a resistência euro-norte-americana centrada como expressão de uma vontade infinita de poder que, embora tenha globalizado nos últimos cinco séculos, precede-a ao impulso imperial que transfere Roma para a Europa como sua continuidade projetiva. Nesse sentido, a modernidade é a forma como o Ocidente se redefine, através da conversão religiosa transformada em economia política, ou seja, o capitalismo como teologia  mundana salvífica.


Nesse sentido, o anticristo é um conceito teológico que nos ajuda a medir a verdadeira magnitude do mal quando este é instituído como um sistema-mundo, isto é, quando se torna uma racionalidade hegemónica capaz de desenhar o mundo inteiro em correspondência com ele e fundar todo um sistema de crenças e valores que estabeleçam a moral sistêmica de um mundo como uma totalidade ontológica, ou seja, fechada.

A reflexão meta-geopolítica que realizamos visa desmascarar este sistema-mundo como aquele que transcreve existencialmente a cosmogonia do Ocidente (assumida como a fenomenologia do espírito pela modernidade), ou seja, a ordem teo-onto-antropológica de uma classificação geopolítica. metafísica dualista que, através da fetichização do seu amplo espaço de vida, distribui papéis e funções, gerando esferas de influência endêmica e cadeias globais de transferência unilateral da vontade de vida, da periferia para o centro, para reafirmar e consolidar, tornar eficiente e imperecível seu domínio exponencial.

É por isso que alertamos que o desenho centro-periferia não é apenas de natureza geopolítica, mas é a objetivação fenomenal de toda a racionalidade moderno-ocidental que, como formalização da sua cosmogonia e cosmologia pressuposta no desenho do mundo que realiza, gera as condições para desenvolver as consequências desastrosas de uma racionalidade que, em nome da vida, nos últimos cinco séculos, tem produzido a morte sistemática de toda a área periférica daquela distribuição planetária.
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O que testemunhamos no genocídio que ocorre na Faixa de Gaza como a geopolítica do anticristo é isso. A racionalidade da morte que, fenomenologicamente, nos mostra o tipo de mundo e de realidade que produziu e que, no seu próprio colapso existencial, nos mostra o que sempre foi capaz de desencadear: a morte em nome da vida, a guerra em nome da nome da paz, fraude em nome da verdade.

O anticristo faz justamente isso, fala com linguagem messiânica, mas não constitui o povo como Messias, porque esse é o seu papel: o despertar definitivo do povo, dos pobres, excluídos e negados (que são os merecedores do “reino dos céus”) é sinalizado pela racionalidade da morte ou “sabedoria do mundo” como o maior absurdo, rebelião, arrogância diante da ordem divinizada do poder global. É por isso que o tempo messiânico é precedido pelos falsos Messias que procuram impedir, por todos os meios, que o povo adquira a consciência messiânica, isto é, que se eleve à possibilidade de redimir, na sua luta, todas as lutas passadas, toda a história. … e todos os nossos mortos.


Por isso, as análises geopolíticas que, no desenho centro-periferia – pressuposto implícita ou explicitamente – descrevem a crise global, não revelam as implicações ontológicas e antropológicas desse desenho e, consequentemente, não apontam a teologia (como cosmogonia e cosmologia) pressuposta na ordem hierárquico-classificatória de um mundo cujo desígnio é a objetivação de um dualismo metafísico. E é por isso que a ordem unipolar (hoje em declínio) é mais que uma ordem geopolítica, e o desenho centro-periferia mais que uma distribuição estratégico-espacial. É a objetivação desse dualismo metafísico como dualismo antropológico ou classificação binária racializada. É desta forma que a oposição alma-corpo é o que é secularizado nas dicotomias modernas essenciais.

O que se propõe na oposição civilização-barbárie é, na verdade, a oposição superior-inferior. Só nesse sentido é possível desvendar o carácter racializado do próprio capital, uma vez que a dicotomia capital-trabalho, a nível global, é determinada por um desenho antropológico de classificação racial, o que significa que o desenho centro-periferia é entendido como um desenho antropológico. Diagrama vetorial, expresso categoricamente na equação de submissão de poder.

É isto que faz do drama da crise civilizacional uma questão de dimensões trágicas, num mundo envolvido numa crise de sentido existencial que nos arrasta para uma luta fratricida pela pura sobrevivência, sob o slogan artificial imposto pelo 1% dos ricos: a vida não é possível para todos. Portanto, o discurso das “mudanças climáticas” e da transição energética sugerida não é uma solução (e os países ricos sabem disso muito bem), mas sim parte do negócio das apostas irracionais no crescente consumismo dos ricos do mundo (enquanto os limites são aspectos físicos do planeta e da vida, aqueles que estão comprometidos com um ponto adjacente sem retorno).

O centro onto-geo-antropológico da ordem unipolar está consciente de que a sua riqueza só é possível graças à produção sistemática de miséria na periferia global. A sua Agenda 2030, promovida pelo Fórum de Davos e implantada globalmente em toda a estrutura mediática ocidental (sob os guarda-chuvas eufemísticos da sua propaganda supostamente humanista), constitui uma reinicialização onde, em nome da inclusão, na realidade, a exclusão é justificada, e o alardeado respeito pela diversidade e pelas minorias é, na realidade, a violação das maiorias e a imposição de uma homogeneização da restante população após a sua desejada “solução final”.

É por isso que Gaza nos aparece como a fisionomia global da geopolítica do anticristo. Nesse sentido, o mal absoluto não é mais uma figura retórica, mas sim retrata a própria moralidade do sistema, ou seja, o sistema-mundo mal construído. Não se trata de moralizar o argumento, mas sim de mostrar que, quando o mal é diluído na sua encenação puramente doméstica, a sua relevância categórica perde-se no desmantelamento metafísico do modelo ideal que sustenta o sistema-mundo moderno. A própria história do Ocidente é marcada por um dualismo gnóstico que gerou o fundamentalismo teológico como ideologia suprema de uma vontade de poder manifestada como dominação exponencial, isto é, até o infinito.

A partir daí explica-se e compreende-se porque é que os líderes europeus se expressam com a arrogância ontológica daqueles que são o centro e que se sabem ser o centro.


A liberdade liberal do “mundo livre” contra a humanidade

Nos líderes europeus expressa-se o indivíduo metafísico feito deus, que já não faz parte da vida, mas da liberdade reduzida à sua liberdade irrestrita de apropriar-se de tudo. É o indivíduo liberal que lança o seu “mundo livre” numa nova cruzada contra toda a humanidade que ele considera excedentária. Os autoproclamados “libertários” na periferia são os cruzados dispostos a autoimolar os seus próprios países para defender o deus-deste-mundo e o seu reino (leia-se o deus-capital e o reino do mercado). A liberdade que professam é a ideia liberal de liberdade, que não nasce de uma experiência de libertação, mas do automatismo do mercado. Mas a liberdade do mercado não é a liberdade do ser humano. E a liberdade nunca se estabelece.

A liberdade como direito nasce quando a vida é ameaçada; porque a vida é o horizonte último a partir do qual surgem todas as possibilidades existenciais como mediações para um livre arbítrio. O problema do liberalismo e da sua ideia de liberdade reside no fato de partir do indivíduo cindido e divorciado de qualquer relação de pertencimento e interdependência. Como seres desapegados da terra, em primeiro lugar, liberdade significa livres de qualquer comunidade, isto é, desapegados de toda responsabilidade. Isso é o que o liberalismo chama de “emancipação”: o indivíduo abstrato que parte de si mesmo como se tivesse começado do nada.

O neoliberalismo leva isto ao extremo e agora a liberdade é reduzida à liberdade de escolher satisfatores que o reino do mercado gera como autênticas divindades portáteis. Cada um deles promete a “promoção” sonhada, mas nunca alcançada. Nesse sentido, o capital quer que pensemos que é uma coisa mas, na realidade, é uma troca, em que a vontade é transferida através de um acordo: quanto maior for a transferência, maior será a “riqueza”. Mas a troca é sempre desigual, pois todo testamento, que é qualitativo, recebe um pagamento monetário que só pode ser expresso quantitativamente.

É isso que produz o conteúdo da relação social, que é o tipo de intersubjetividade que o capital necessita para se reproduzir: relações de domínio constante e de exploração contínua. Por isso a relevância categórica do mal absoluto para se referir à religiosidade do capitalismo: o mal e o capital não possuem vontade, ou seja, energia própria, por isso precisam roubá-la constantemente.


Geopoliticamente falando, o roubo como transferência constante da vontade de viver, da periferia para o centro, gera uma tal concentração de poder que excede as capacidades efetivas de recepção e administração que todo império possui, como centro geopolítico; de modo que este mais, que é sempre mais-vida, apenas promove um desperdício sem precedentes que perverte os fundamentos morais do próprio Império. O colapso sempre começa dentro e isso também devido às capacidades finitas de todo poder, como recepção permanente e administração eficiente da mais-vida, que nunca é e não pode ser calculada, porque é a coisa supremamente qualitativa eliminada de todo cálculo instrumental.

Neste colapso, a ordem unipolar moribunda está cancelando as suas possibilidades de pensar estrategicamente sobre a sua situação remanescente num novo mundo multipolar. É por isso que podemos observar como o desespero imperial, catapultado pela esfera financeira, é manipulado para direcionar todas as apostas para uma agenda empresarial perversamente especulativa, ou seja, para pensar em tudo de forma residual e redutiva como negócio. Se é a esfera financeira que constitui o poder profundo, então agora, literalmente, o comércio é a política e os negócios são a ideologia.

Neste contexto, o poder financeiro, de forma apátrida, pode polarizar o conflito global através de um antagonismo intransponível entre o arco central sionista-anglo-saxónico e os BRICS+, o que constituiria o escudo defensivo, em todos os termos, de uma periferia que não não quer mais ser periferia.


O arco latino-americano e, sobretudo, os países que se autodenominam populares, devem levar em conta esta nova realidade, porque a reposição imperial só tem o seu chamado quintal para financiar a resistência, via sangria do nosso continente, à expansão chinesa e russa. É por isso que o golpe orquestrado no Peru contra o Presidente Castillo foi, na realidade, o início de um golpe geopolítico contra a região do lítio.

Após a aprovação do Congresso peruano para a entrada de soldados americanos, é possível deduzir um novo panorama de militarização regional, uma vez que faz parte do plano de militarização estatal desenhado pelo Comando Sul dos EUA, como um plano de contenção contra a expansão dos BRICS. A militarização também foi declarada pela vice-presidenta eleita da Argentina, Victoria Villarruel, antes mesmo de se tornar governo, apelando ao fim do “estado de indefesa da nação”, ao fortalecimento das Forças Armadas. porque seus membros, segundo seu depoimento, “estão desmoralizados e sofrem acentuada frustração profissional”. Por isso não é exagero assinalar que o ‘modelo Jujuy’ se estende a toda a Argentina, uma vez que o Decreto de Necessidades de Emergência e a lei Omnibus são acompanhados de uma criminalização de todos os protestos sociais.


Agora, para ser rigoroso, o tráfico de drogas (que constitui um poder de facto de magnitudes inimagináveis) nunca operou fora da geopolítica imperial, mas sim sob a sua indulgência e até em cumplicidade com ela. Por isso, é aconselhável avançar critérios de hermenêutica geopolítica, para não cair, como sempre, em apoios demagógicos inocentes dentro do que é “politicamente correto”.

Parece que os nossos governos não aprenderam nada com a armadilha que Washington preparou para toda a Europa com o capítulo da Ucrânia, ou com o que pretendiam com Gaza, a nível global. Também relevante é a aparição de Israel no Tribunal Internacional de Justiça – CIJ (que também significa levar o próprio Império à justiça), promovida pela África do Sul, e que mostra uma desejável nova ordem jurídica internacional alinhada com um novo mundo multipolar.

Este contexto já deveria representar a oportunidade de enfrentar conjuntamente os planos regionais de balcanização. A derrota imperial na Ucrânia é apenas a sombra do que a derrota do sionismo representa perante o mundo, o que pode ser descrito como o maior fracasso da política externa americana, prodigalizada pelo seu próprio querido no Médio Oriente, isto é, Israel.



A geopolítica do anticristo do chamado ‘mundo livre’ 
É por isso que Netanyahu precisava de uma justificação para invadir Gaza e projetar o que deslumbrou à audiência diplomática da ONU, quando apresentou o IMEC ou “Corredor Económico Índia-Oriente Médio-Europa”, como uma alternativa ocidental ao corredor geoestratégico Norte-Sul que planeou ligar a Rússia à Índia, através do Irão, e à “Iniciativa Cinturão e Rota” ou Rota da Seda Chinesa. Esse projecto foi apresentado em 22 de Setembro na Assembleia Geral da ONU de 2023, como o “maior projecto de cooperação que mudará a face do Médio Oriente e beneficiará o mundo inteiro, trazendo paz e prosperidade”, disse Netanyahu.

E diante do mundo inteiro, sem que ninguém se opusesse, mostrou o mapa do “novo Médio Oriente”, apagando completamente Gaza (talvez por isso, salvaguardando todos os seus próprios negócios – como que corroborando que é a única ideologia aceite). Mesmo a “Liga dos Países Árabes” nada mais faz do que declarações tímidas sem qualquer efeito real face ao genocídio desencadeado contra os palestinos de Gaza; sendo os Houthis aqueles que tiveram que demonstrar a vulnerabilidade exponencial do próprio Ocidente, cúmplice do genocídio).

O projecto IMEC israelense não pode trazer qualquer “paz e prosperidade” àquela região, sabendo que, se for executado, significará a anulação do Irã e do Egito como corredores estratégicos de abastecimento global. A aproximação promovida entre Israel e a Arábia Saudita (agora suspensa) tinha a ver com aquele projecto que os ligava como eixo estratégico dissuasor da expansiva Rota da Seda. Todos procuram sobreviver, nas melhores condições, na inevitável nova cartografia geopolítica multipolar.
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Sabe-se agora que o primeiro-ministro Netanyahu se reuniu anteriormente na Casa Branca com o presidente Joe Biden e Anthony Blinken. A questão era o “canal Ben Gurion” que, a partir do Golfo de Aqaba, deve ser ligado ao Mar Mediterrâneo através do norte de Gaza (onde estão localizadas as maiores concentrações de gás offshore), para completar a viabilidade do IMEC projeto (deslocando o “Canal de Suez”). Tal como aconteceu com o ataque de 11 de Setembro, os EUA precisavam de uma justificação para invadir o Afeganistão e fazer com que as corporações americanas assumissem o negócio de distribuição de gás do Turquemenistão ao Extremo Oriente, agora o governo sionista precisava de outra justificação para garantir o negócio dos negócios, que é, como dissemos, o limite cognitivo que manifesta toda aposta política como pura política empresarial, em suma, política neoliberal.

Para isso, a guerra é a forma mais rentável de impulsionar a economia, porque, além disso, a guerra facilita algo que minimiza custos: basta recolher os escombros para reiniciar tudo. É isso que fazem as empreiteiras de reconstrução que nascem da privatização da guerra (John Locke está mais atualizado do que nunca: as vítimas devem pagar até mesmo pelas despesas incorridas pelo invasor). Essa é a ideologia neoliberal que se torna cultura social: é melhor livrar-se de algo do que consertá-lo. O mundo do capital já não funciona, mas aqui não se trata de consertar nada, mas de se livrar de tudo que impede o seu livre desenvolvimento, ou seja, agora, a humanidade que é considerada excedente e, consequentemente, descartável, ou seja, os pobres que o próprio capitalismo produz.?



Eles não concebem a sua violência como violência, mas como a defesa legítima de uma ordem ameaçada que consideram sagrada. Na realidade, a direita e, agora, o renascido fascismo de classe média, nunca renunciaram à violência. Exceto o Império. Os domesticados num pacifismo idílico foram os “progressistas” da esquerda coquetel, que depois das ditaduras capitularam às opções populares à obediência às regras democráticas impostas pela mitologia democrática gringa. Regras seguidas obedientemente pela classe política e abençoadas por todo um establishment acadêmico-intelectual que cumpriu e cumpre muito bem o seu papel de agente naturalizador da cosmologia imperial.

Embora a direita possa ignorar as regras, os governos “progressistas” sempre dão um exemplo de cumprimento medido dessas regras destinadas a nunca mudar nada sobre a dependência estrutural dos nossos estados. Nesse sentido, a renúncia ao argumento da violência significa, para o povo, em última análise, a renúncia à defesa legítima. É nesta renúncia que o componente social fascista urbano se eleva perante um povo confinado à sua resistência passiva órfã. Embora o agressor possa ostentar a sua violência encoberta nos meios de comunicação social, por exemplo, como “liberdade de expressão”, aos atacados só é permitida a resignação como uma aceitação abnegada da sua inferioridade.

A violência só é legítima quando é em defesa própria, e é mais legítima quando é exercida em defesa da vida, não só a nossa, mas a de todos. É por isso que as revoluções são expressões do poder popular e é também por isso que o poder popular é chamado de poder; porque o verdadeiro poder nasce da resistência, da indignação transformada em poder, da perseverança transformada em esperança, da raiva transformada em sabedoria.

Mas a narrativa imperial domou muito bem a nossa própria percepção das nossas lutas de libertação, incluindo das lideranças que inspiram a nossa teimosa esperança num mundo mais digno e justo. Por exemplo, costuma-se acreditar que a luta liderada por Gandhi foi pacifista, mas um detalhe é esquecido: a desobediência do sujeito é considerada pelo Império como inédita, isto é, porque ignora e nega a autoridade e sua ordem sagrada, a desobediência representa a violência em seu estado puro.

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Estamos presenciando o desastre cataclísmico de uma ordem imperial que possui uma concentração de poder nunca antes imaginada. E estamos vendo como utiliza todos os seus recursos para reabastecer sua hegemonia civilizacional, ou seja, não deixar de ser o centro. Fará todo o possível e impossível para garantir os seus interesses, que são os valores morais do 1% de bilionários e trilionários que têm planejado a sua agenda de governação global entrelaçando e reunindo os interesses mais inimagináveis ??face à rebelião de os limites físicos da sociedade, da vida e do planeta.

Só os povos do mundo e o seu próprio horizonte ancestral têm outra alternativa mais digna, racional e verdadeira do que aquela disputada pelos poderes em permanente colisão. Não existe mais mundo. O que existe é um transtorno distópico no meio de uma transição que quer ser indefinida. É por isso que as pessoas devem propor a reconstrução de um novo mundo. Um mundo, como dizem os zapatistas, onde cabem todos, onde a vida é possível para todos. Esse é o horizonte utópico mais válido e legítimo que despertará a fé e a confiança (ocultas pelos termidores de cada revolução) dos pobres, dos oprimidos, dos excluídos e dos negados, constituídos como povo, no poder popular, na autoconsciência messiânica. Esse é o verdadeiro desafio deste novo século.
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Rafael Bautista Segales, filósofo e escritor boliviano. Ex-diretor de Geopolítica do Bem Viver e Política Externa da vice-presidência da Bolívia. Autor de “O conselho do século XXI. Geopolítica descolonial de uma ordem global pós-ocidental”, edições CICCUS, Buenos Aires, Argentina. Ele dirige “a oficina de descolonização”.

 

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