Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
O dia começou e a luz do sol não veio. O amanhecer poderia ser definido na antiguidade grega como o dia em que o deus Apolo esqueceu de sair da morada dos deuses, a escuridão se apresentou com intensidade tão grande que imprimiu medo e angústia, mas Ulisses, Roberto e Inaiê estavam no meio do caminho, a rodovia não apresentava lugar para estacionar, não aparecia nenhum refúgio, a única possibilidade era continuar. A chuva era torrencial, seguida de intermitentes relâmpagos e trovoadas. O desespero começou a contaminar Roberto e Inaiê, em muitos momentos suas expressões de pavor assustavam ainda mais Ulisses que estava conduzindo a ferrugem dos esperançosos, que oscilava para todos os lados, parecia que o veículo iria tombar, quando subitamente Inaiê gritou:
– Para essa combi, no meio do caminho mesmo, se não vamos morrer!
O grito de Inaiê causou eco no interior da combi. Contudo, Ulisses queria continuar, seu receio era que parar poderia causar um acidente, pois mesmo não havendo muito movimento, outro motorista poderia surgir e não visualizar a combi, tornando o choque inevitável. Caso todos motoristas parassem não seria o problema. Porém, as decisões não são unânimes, o humano é um ser que tem consciência e tem a possibilidade de escolher, o que muitas vezes entra em conflito. Aliás, toda escolha não se limita a um indivíduo, pois traz consequências para os demais, na decisão pesa a responsabilidade que temos diante da humanidade. Desse modo, no terceiro dia de viagem, o princípio de Sartre em que toda a escolha implica toda a humanidade parecia se confirmar. Diante dessa situação, Roberto resolveu falar para Ulisses:
– Temos que tomar uma decisão! O caminho e as condições não são favoráveis, quando saímos, de madrugada, não poderíamos imaginar que encontraríamos esse clima. Do contrário, poderíamos ter aguardado. Eu penso que devemos continuar, mas vejo que sua irmã está muito assustada.
Ulisses concentrado na rodovia e, ao mesmo tempo, preocupado disse a Roberto:
– Nesse percurso temos uma grande dificuldade. Nele se revela a nossa forma de agir no mundo e isso nos define. Essa decisão de parar diante da tempestade ou não, devemos tomar conjuntamente. A democracia pode ser frágil e lenta, mas revela que somos ativos, na condição de tomar decisão e fazer, pois não estamos apenas no mundo, temos uma consciência e uma tomada de decisão mediante a ação.
Nesse momento, Inaiê que passara os dois dias anteriores lendo a obra de Rousseau, começou a pensar sobre o que se poderia fazer diante daquela situação. Talvez muitos diriam que é loucura pensar diante da tempestade. Todavia, o ato de pensar é a forma de encarar o problema e tornar os pesadelos menos intensos, é a condição para o despertar do pensamento capaz de orientar nossas ações. Enquanto os pensamentos de Inaiê estavam sobre o peso da angústia e ao mesmo tempo com uma lucidez para pensar a democracia, a coruja, que acompanhava os viajantes, se soltou dentro da combi. Para surpresa dos três viajantes, ela não saiu assustada, parou em cima de um dos assentos do veículo, e emitiu um som que parecia ser um cântico. Os três viajantes se olharam e riram ao mesmo tempo. Inaiê, um pouco mais aliviada resolveu falar:
– A democracia é complicada, é difícil, mas vejo que é uma das melhores formas de se viver em sociedade. Aliás, podemos trazer o problema do que estamos vivendo. Dado que Ulisses está conduzindo a ferrugem dos esperançosos, mas a decisão de parar ou continuar não cabe somente a ele, pois as nossas vidas estão em jogo. Nesse sentido, lembrei que Rousseau dizia que para haver democracia é necessário formar cidadãos, que não apenas vivem na sociedade, mas tomam decisões em favor da coletividade. Porém, o problema está no fato que fomos educados para pensar na nossa sobrevivência, na nossa satisfação pessoal. Desde criança aprendemos a pensar nas nossas satisfações, nos nossos desejos e interesses. Os pais fazem tudo para os filhos, que choram, desejam e são atendidos. Nesse momento, os pais acabam formando pequenos tiranos, que não foram educados para a cidadania, mas para sua tirania pessoal. Quanto ao Estado, esse passa ser não um ambiente democrático, mas o símbolo da conquista de poder, que começou com crianças inocentes, mas educadas de tal forma a desenvolverem o amor próprio, interesseiro, que visa a si mesmo. Nesse sentido, a sociedade tira do ser humano a possibilidade de ser melhor, pois ensina que seus desejos são mais importantes do que os demais, a única questão que fica é como aprender a conquistá-los.
Após a fala de Inaiê, Roberto resolveu questionar:
– Então vamos colocar em votação se devemos parar ou não, pois a vontade da maioria é democrática.
Nesse momento Inaiê chacoalhou a cabeça e disse:
– A democracia não é tão simples assim, pois o simples consenso não quer dizer que somos democráticos, muitas tiranias se constituíram a partir do acordo da maioria. Por esse motivo, Rousseau fez uma distinção muito interessante entre Vontade da maioria e a Vontade geral. A primeira corresponde ao mero acordo, promovido pela conciliação, troca de favores, pelos medos ou paixões. Por sua vez a Vontade Geral, exige cidadãos, que possuem a capacidade de pensar no bem da coletividade, mesmo se isso significar um sacrifício para si mesmos. No entanto, para formar um bom cidadão é necessário formar ou educar um ser humano, desenvolver o que Rousseau chamou de amor de si, que é um sentimento pela conservação e, também, uma capacidade de perceber o sofrimento alheio. Para chegarmos a isso, segundo Rousseau, não basta a racionalidade, pois essa pode ser meramente calculista, faz-se necessário resgatar a capacidade de sentir e ser solidário com os demais, que não sejam apenas membros da família, mas pensar na coletividade.
Quando Inaiê terminou de falar, Ulisses assinalou que continuaria a viagem, que isso não estava em votação, andaram alguns quilômetros, quando de repente um dos pneus da combi caiu sobre um buraco da pista, fazendo Ulisses perder o controle, a Combi deslizou e tombou, caiu sobre as margens da pista, que tinha um terreno íngreme, a ferrugem dos esperançosos deslizou por uns quinze metros, até que foi parada por uma grande pedra. Os três viajantes, com o choque, acabaram apagando. Alguns minutos se passaram até que começaram a acordar, mas tiveram que permanecer no local, o dia ainda parecia ser noite, não sabiam direito onde estavam, mas tinham consciência que uma escolha fora feita, agora tinham que arcar com as suas consequências.
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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.