Por Jefferson Maier e Carmen Susana Tornquist- PPGPLAN/UDESC.
Atualmente o estado de Santa Catarina passa pela mais grave crise habitacional de sua história, e fica cada dia mais difícil ignorar a situação. Até mesmo as estimativas oficiais, que tendem a lidar com dados subestimados, dizem que faltam 203 mil domicílios (considerando o ano de 2019 e as famílias que recebem até 5 salários-mínimos). Estes dados são da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social de Santa Catarina referentes ao assim chamado Déficit Habitacional, que leva em conta uma série de critérios, como o excessivo peso do valor do aluguel no orçamento familiar, a precariedade das habitações, e o “viver de favor”, que atestam a falta de dignidade com que a classe trabalhadora vive, mesmo sendo aquela que produz a riqueza que é desigualmente usufruída. Porém, dados de outras instituições apontavam mais de 260 mil domicílios referentes ao mesmo período, como foi o caso do levantamento da ABRAINC (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), cujos objetivos, evidentemente, se referem ao lucro e ao acúmulo de capital.
Fazendo uso da nossa imaginação – mas considerando os dados que temos – poderíamos afirmar o seguinte: se de um dia para o outro construíssemos em um único espaço esses mais de 200 mil domicílios, que hoje são compostos por famílias vivendo em condições instáveis ou precárias (“em déficit”) e ali neste novo conjunto habitacional se instalassem famílias formadas por dois adultos e uma ou duas crianças, teríamos uma grande cidade com uma população maior do que em qualquer município do Estado.
A “Cidade dos Sem-teto” seria inicialmente maior até que Joinville, município populoso de Santa Catarina. É este o grau do problema, que apesar de não se apresentar desta forma aos nossos olhos, é sentido diariamente pelas milhares de famílias que precisam ponderar, todo santo dia, se se vão comprar comida ou pagar o aluguel!
O Déficit Habitacional é o critério mais utilizado no Brasil, hoje, para medir a falta de moradia e a sua flutuação – tanto por tempo quanto por critério, como preço do aluguel, coabitação, entre outros[1]. Por mais que os objetivos de mensuração destes dados seja questionável e sua metodologia, alvo de críticas (o déficit é contabilizado para que se construam mais moradias, do ponto de vista dos incorporadores); os números, ainda assim, nos mostram um panorama de caos, de ausência grave do Estado, de afronta aos direitos constitucionais e humanos. Imaginemos, então, se houvesse um aperfeiçoamento nos métodos e nos objetivos destas pesquisas: certamente teríamos muito mais pessoas cuja condição de vida – da qual a moradia digna, com condições de reprodução – estaria muito abaixo do minimamente justo.
Somado a isso, o Governo do Estado de Santa Catarina, sob a gestão de Carlos Moisés (do Partido Republicanos) quer colocar na rua – sem oferecer alternativa habitacional digna – mais de 3 mil famílias, segundo os dados levantados pelo OcupaSC e Campanha Nacional Despejo Zero. Participam dessa empreitada de ataque, e ainda, com mais força e ódio aos trabalhadores, as prefeituras próximas da capital Florianópolis, como nas cidades de São José administrada por Orvino de Avilla (PSD) e da Palhoça, sob a gestão de Eduardo Freccia (PSD).
Ressaltamos ainda que, nos últimos anos, o estado de Santa Catarina, trabalhou na direção contrária aos interesses da maioria do povo: até mesmo programas de habitação de caráter federal, cujos recursos poderiam ser acionados, não foram viabilizados e, ainda, houve a liquidação da Companhia Habitacional estadual, com tentativa de leilão do patrimônio e esvaziamento dos fundos públicos destinados às políticas de habitação. Quando muito, foram criados programas sem diagnósticos sérios, nem pertinência com a realidade. E agora, mesmo no contexto da pandemia e da crise econômica, estes políticos insistem que a alternativa para “melhorar” a vida nas cidades é despejar as famílias trabalhadoras que vivem em favelas, em ocupações e demais assentamentos informais. Enquanto o problema da falta de moradia só aumenta.
Para garantir a sobrevivência cotidiana da população, algumas alternativas surgem no horizonte. Destacamos que nenhuma delas parte do chamado Poder Público, ou seja, o Estado assume uma posição de classe clara: defende os interesses dos grandes proprietários, dos especuladores e agentes imobiliários, da burguesia, enfim, abandonando o povo. Contra a crise habitacional, fica evidente que apenas a luta organizada – expressa pelas Ocupações – é a saída para a moradia digna e para que a função social da propriedade, previstas na Constituição – sejam minimamente alcançadas.
Primeiro cabe colocar que a Função Social da propriedade é elemento que limita e subordina a propriedade privada que está na Constituição de 1988. Ou seja, mesmo que estejamos em uma sociedade capitalista, a propriedade privada não é absoluta, ela precisa cumprir uma função coletiva (social e ambiental). Segundo que a função precisa ser de gerar emprego e renda, moradia, de produzir alimentos ou de preservação ambiental. E terceiro aspecto, não menos importante, que o Estado brasileiro dispõe de inúmeros mecanismos – também apontados na Constituição Federal e aprofundados pelo Estatuto da Cidade, de 2001) – que seriam úteis para garantir que a função social seja cumprida. Estes mecanismos incluem desde cobranças de impostos progressivos no tempo (como, por exemplo, o IPTU progressivo) até a expropriação dos imóveis ociosos ou abandonados com fins de construção de habitação popular (por vezes com pagamento para o proprietário ou especulador). Neste sentido, uma das consignas dos movimentos de luta pela moradia no Brasil “muita casa sem gente, muita gente sem casa” é uma verdade incontornável para pensar a Grande Florianópolis.
Contra essa lógica, e lutando para garantir a moradia digna para milhares de famílias, cada vez mais surgem e se organizam (territorial e politicamente) Ocupações Urbanas em Santa Catarina. As famílias que se inserem nestes espaços lutam não só contra a falta de moradia e de políticas públicas e contra um planejamento urbano que prioriza os ricos e poderosos, mas também buscam conquistar direitos que lhes são historicamente negados – como acesso à saúde, educação, segurança, entre outros.
Levantamentos atuais indicam que temos cerca de 1000 famílias vivendo em mais de 10 comunidades que se autodeterminam Ocupações Urbanas na região da Grande Florianópolis, mas vemos que no Estado inteiro temos quase o dobro disso, principalmente nas cidades grandes e médias e, também, nos pequenos municípios. São territórios que não só disputam espaço contra a especulação imobiliária e com aqueles que querem a cidade pelo lucro, mas que servem para aliviar a superexploração e espoliação que o sistema capitalista impõem aos trabalhadores e trabalhadoras.
As Ocupações se apresentam enquanto um espaço diferenciado na cidade, produzindo uma outra forma de habitar. A Organização (que é seu elemento central), tenta substituir os acordos tácitos e naturalizados pela lógica capitalista por outros acordos, democráticos, entre iguais e construídos através do diálogo. Praticamente todas as Ocupações se organizam em um modelo de assembleias, e tomam decisões coletivas em espaços e reuniões nos quais todos os moradores e moradoras possuem voz e se comprometem com funções e atividades. As tarefas cotidianas também são divididas entre os ocupantes em diferentes formas de comissões e estruturas, como limpeza, gestão do espaço, cuidados com crianças, saúde, alimentação, segurança, etc. Naquele espaço forma-se um sujeito coletivo, o Sujeito Ocupante, que luta pela moradia e pela garantia de direitos, e que a partir da Organização Política tenta construir outro tipo de sociabilidade.
Visita das Ocupações de São José na Ocupação Carlos Marighella. Fonte: Instagram marighella.sc
Essa lógica assusta o “status quo”, pois coloca em cheque toda estrutura do sistema capitalista em que vivemos, pautado na exploração e no individualismo. E, diferente das outras tentativas de “resolver” a questão habitacional, é uma das únicas que ataca diretamente a raiz do problema: a propriedade privada e a transformação da habitação em mercadoria. E não é difícil estender o que vemos nas Ocupações urbanas às lutas no campo: as Ocupações de certa forma repetem experiências que advém dos Assentamentos da reforma agrária e Comunas da Terra, que além da própria luta, alimentam nosso povo, a partir do trabalho coletivo e observando princípios ecológicos, respeitando saúde e natureza.
Acima e abaixo: Imagens do ataque à Ocupação Carlos Marighella. As fotos mostram o momento em que foguetes são disparados contra os prédios e pessoas circulando com armas na mão. Fonte: Instagram marighella.sc
É por isso que elas são criminalizadas e atacadas diretamente e diariamente, como vimos recentemente na Ocupação Carlos Marighella, na Palhoça, onde policiais fora de horário de serviço e vizinhos de camadas médias dispararam tiros e foguetes contra os ocupantes, buscando produzir o medo e afugentar as famílias. Tudo isso com a conveniência dos serviços de segurança pública do Estado, e com o incentivo de jornalistas e políticos locais, que fomentam o ódio e o ataque aos princípios mais elementares da dignidade humana. Nesta via, fica evidente ao observador atento quem são os “baderneiros” e “invasores”, adjetivos que utilizam para culpar o suposto inimigo, quando, de fato, são seus gestos que estas palavras devem abrigam. Os acontecimentos recentes no bairro da Guarda do Cubatão, entre inúmeros outros, revelam esta lamentável situação.
Ao mesmo tempo, através de seus gestores o Estado tenta evitar a todo tempo a construção de políticas públicas e garantia de direitos pelas Ocupações Urbanas. A Ocupação Contestado, no bairro Serraria, em São José, por exemplo, conquistou um processo de negociação para construção de um projeto habitacional em terreno da União desde 2014, mas as tratativas não seguem em frente pela evidente falta de vontade política da prefeitura. O mesmo vem acontecendo, mais recentemente, com a Ocupação Vale das Palmeiras, no mesmo bairro, enquanto isso o problema da moradia para a classe trabalhadora só aumenta.
Documentário Sobre o Amanhã: https://www.youtube.com/watch?v=gm_N9Uuw4Bk
Foto do I Encontro de Comunidades de Resistência (2019) na Ocupação Contestado, em São José. Na imagem estão moradoras da Ocupação Contestado e Ocupação Fabiano de Cristo. Fonte: Brigadas Populares
Os ataques e as recusas dos governos em negociar com as Ocupações têm se mostrado cada vez mais reveladores de sua natureza, ao mesmo tempo, o apoio às ocupações só cresce: são jovens trabalhadores e estudantes, professores, servidoras e servidores públicos e ativistas de todo o canto que se identificam com a luta por moradia. Pois também para amplos setores das chamadas camadas médias a moradia é um problema grave – vamos lembrar que Florianópolis e São José estão entre as cidades em que o valor do aluguel mais cresceu no país.
Assim, vamos vendo cada vez mais “comunidades” – desincentivadas a conviverem em união, ao gosto da sociabilidade individualista – partindo em luta por direitos e pela sua própria auto-organização: se ajudam, se reúnem, se reconhecem, se protegem, descobrindo na sua condição de classe seu valor e sua força. Se de um lado os ataques e despejos tentam travar o real que se descortina, os movimentos organizados vão crescendo em quantidade e em qualidade: esboçando eles próprios outras formas, outros métodos e outros horizontes de possibilidades.
[1]Sobre os componentes do Déficit Habitacional ver: Tornquist, C. S., & Maier, J. A. (2021). A MORADIA COMO QUESTÃO: UMA COMPARAÇÃO ENTRE AS IDEIAS DE ENGELS E O CONCEITO DE DÉFICIT HABITACIONAL. Revista Novos Rumos, 58 (1), 89–103. https://doi.org/10.36311/0102-5864.2021. v58 n1. p 89-103