A existência no virtual sobrepujará o viver físico-material após a pandemia? Por Elissandro Santana.

Imagem de Gerd Altmann em Pixabay

Por Elissandro Santana, para Desacato.info.

Antes de qualquer discussão, é importante destacar que este texto é um recorte do artigo que tem como título “NOVAS SEMÂNTICAS GEOGRÁFICAS SOBRE ESPAÇO MATERIAL E VIRTUAL EM TEMPOS DE COVID-19”, publicado esta semana na Revista Geographia Opportuno Tempore, da Universidade Estadual de Londrina.

Feita esta explicação, é necessário pontuar que ainda não é possível responder a esta pergunta, mas é fato que a vida não será a mesma após a pandemia, no entanto, é inegável que as pessoas passaram a entender o funcionamento das trocas humanas pela virtualidade, mas ainda é cedo para o nascimento do homem que constrói plenamente a espacialidade pela virtualidade.

Segundo Santos (2006), no começo da história do homem, seus instrumentos de trabalho eram separados, mas, atualmente, estão mais indivisíveis como uma estrada de ferro, uma autopista etc. O caminho histórico dos instrumentos de trabalho vai, cada vez mais, da divisibilidade à indivisibilidade e do dado isolado ao sistema. É o que ocorre com a energia elétrica, a água, o telefone etc. Outra tendência atual dos instrumentos de trabalho é ir do diminuto ao imenso – por exemplo, os circuitos integrados e os hipermercados. Cada um desses instrumentos é um sistema em si mesmo, que se relaciona com um sistema global. Dessa forma, um shopping-center tem seu próprio sistema de crédito, seus estacionamentos, sua lógica organizacional, seu sistema funcional. Há uma sistematicidade do objeto moderno que se relaciona com um sistema maior. Passamos dos objetos, geográfica e funcionalmente isolados, para os objetos agrupados sistematicamente e também sistêmicos. As cidades mais antigas adaptam-se, transformam-se mais ou menos lentamente; as novas já nascem assim.

É inegável que o virtual, para muitos neste contexto pandêmico, se transformou em espaço de trabalho e de vida, mas essa condição foi forjada e forçada por um vírus e isso requer análises não somente no campo da Geografia, mas da Filosofia, da Psicologia, da Sociologia, da Antropologia e de outras áreas do conhecimento.

Outras noções estão em construção sobre o ser no espaço e o espaço sobre o ser, mas é preciso esperar para perceber o que as novas realidades pós-pandemia trarão. Pode ser que o novo normal perdure por anos e isso interferirá ainda mais na semântica social e política do existir. A redução do espaço, do território em uso, reduzido pela pandemia, nos faz lembrar aquilo que Fraga (2017) apresenta no texto Território e Silêncio: contributos reflexivos entre o empírico e o teórico, ao citar Claude Reffestin, que a produção de um espaço, o território nacional, espaço físico, balizado, modificado, transformado pelas redes, circuitos e fluxos que aí se instalam, tais como as rodovias, os canais, as ferrovias, os circuitos comerciais e os bancários, as autoestradas e as rotas aéreas, podem ser resumidos pelo autor como a prisão que os homens constroem para si.

Seguindo o raciocínio acima, conforme Dourado e Grade (2020), ancorado em Castells, Santos, Acosta e Krenak, é provável que a atual crise da pandemia de coronavírus culmine com o fim de um ciclo, abrindo espaço para a gestação de um novo modelo de sociedade assentado em outros paradigmas, valores e visões de mundo.

Diante de tudo, não podemos perder de vista, jamais, algo muito importante: o que Dourado e Grade (2020) afirmam com base em Harvey (2020), Davis (2020) e Santos (2020): que a pandemia está desarticulando as cadeias produtivas globais e potencializando as cadeias curtas. As sociabilidades estão mudando com a quarentena: temos visto o surgimento de novas formas de solidariedade, maneiras de se relacionar, hábitos de consumo, relações de trabalho. Em oposição, há um expressivo aumento do desemprego e da desigualdade, inerentes ao capitalismo, expondo uma realidade na qual os mais pobres são os que mais sofrem com a pandemia, sem garantia de renda, segurança alimentar, segurança sanitária e direito à saúde.

É fato que nossa experiência com o virtual se amplificou na pandemia. O que antes era complementar passou a ser central, pois praticamente tudo se resolveu por meio do virtual. Com base na noção acima, é importante recorrer a Simon Schwartzman, no artigo “Introdução ao Pensamento de Georges Gurvitch”, para compreender que, no tangente à experiência, ela é a fonte única do conhecimento, e a dialética visa à flexibilização e renovação permanente dos quadros de referência para a apreensão da experiência constantemente renovada e fluida. Como a experiência quotidiana não é jamais totalmente imediata ou totalmente construída, mas sempre intermédia entre os dois, a dialética hiper empírica procura apreendê-la em todos seus graus de maior ou menor espontaneidade, contradições e incoerências. Faz-se uso, assim, dos procedimentos operatórios de complementaridade, polaridade, ambiguidade, reciprocidade de perspectivas, implicação mutua e outros que forem descobertos, tendo-se sempre em vista que o objetivo de sua utilização é a demolição perpétua dos conceitos, a destruição de tudo que possa impedir ou dificultar a entrada em contato com as sinuosidades do real. A pluralidade de técnicas de dialetização é considerada como a superação de “um dos graves erros de toda a dialética passada”, que era de reduzir os diferentes procedimentos operatórios a apenas um, o da antinomia ou polarização entre contrários1.

A ampliação semântica do real para além do espaço físico-material que antes parecia ficcional no espaço virtual antes da pandemia, no contexto da necessidade do isolamento e do distanciamento, se transformou em campo das opções possíveis. Nesse sentido, Da Silva (in Santos, 1996), no capítulo “Contribuição à crítica da crise da geografia”, versa que as determinações do real devem ser apreendidas e apropriadas para nós e para os outros. Elas se apresentam em várias escalas que se entrecruzam na determinação dos espaços individual e coletivo de vida. O projeto deve conduzir à efetivação da objetividade, inerente ao cotidiano, em meio às contradições do ser e do pensar. É preciso definir os objetivos a alcançar e descobrir as condições materiais para sua realização. Por isso, os espaços da Geografia se põem, ante nós, como espaços plurais a serem conquistados.

Os remodelamentos e reformulações conceituais sobre o espaço de vida na virtualidade se encaixam naquilo que Sá (2014) afirma – que o desejo de tudo fazermos em um período de tempo cada vez menor e de não perdermos nada do que se passa já não só à nossa volta, mas também no mundo, não permite a vida nos espaços físicos que ocupamos. Os espaços físicos transformam-se em meios que possibilitam a interação no espaço virtual: nunca estamos onde estamos fisicamente – contatos, informações, publicidade (celulares, computadores, cartazes, monitores, alto-falantes) –, tudo isso nos transporta para outras realidades, problemas, alegrias, desejos, nos faz sonhar sem o sonho.

Ainda a partir de Sá (2014), tem-se que as transformações que atualmente ocorrem na vida cotidiana de cada um de nós, e que resultam do processo de globalização, refletem-se na nossa relação com o espaço, o tempo e os outros.  Com base nessa posição, pode-se dizer que a pandemia interferiu em nossa dinâmica de vida e até em nossas bases conceituais sobre a ideia de espaço e, também, de tempo.

Por fim, é possível afirmar que a noção de espaço virtual já existia mesmo antes da pandemia, mas era uma ideia abstrata ou praticada somente por alguns, dado que era complementar à existência físico-material. É a partir dessa posição que se discute neste trabalho que a pandemia causada pelo coronavírus surgiu remodelando essa concepção que mais parecia ficção para a maioria da população brasileira e até mesmo para outras nações.

Se por um lado, a pandemia ajudou na percepção de que a virtualidade é um espaço real mesclado com o físico, dado que para o virtual se parte sempre de um espaço físico, não se sabe até que ponto, esse viver, agir e sentir no virtual se ampliará, em um contexto espacial físico pós-pandêmico.

É fato que a geografia do existir se reconfigurou no virtual, mas, ao mesmo tempo, alguns atores sociais, na negação da pandemia, continuaram circulando e transitando pelos espaços físicos interditados pelo coronavírus em desobediência à realidade imposta, portanto, essas outras novas semânticas sobre a vida a partir da espacialidade virtual não se concretizaram na mesma medida para os atores e as atrizes sociais desse país de dimensão continental chamado Brasil. O que se sabe é que as percepções sobre o real a partir do virtual se remodelaram, em algum nível, para toda a sociedade.

Referências para a construção do texto

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. In FRAGA, Nilson Cesar. Território e Silêncio: contributos reflexivos entre o empírico e o teórico In: Territórios e Fronteiras: (Re)arranjos e Perspectivas. 2ª ed. Florianópolis, SC: Editora Insular, 2017, p. 73-90.

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CARVALHO, Maria Bernadete Sarti da Silva. Meio Ambiente e Cidadania: A interface Educacional, 2004. 224f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2004.

CASTELLS, M. A hora do grande reset. Outras Palavras, São Paulo, 27 de abril de 2020. Disponível em: <https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/castells-a-hora-do-grande-reset/ Acesso em: 20 de maio 2020.

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DE OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Espaço e tempo: compreensão materialista dialética. In SANTOS, Milton (org). Novos rumos da geografia brasileira. 6. Ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1996.

DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.

DOURADO, Nathan Pereira; GRADE, Marlene. Decrescimento e bem-viver: paradigmas para o mundo pós-pandemia? Revbea, São Paulo, V. 15, No 4: 380-401, 2020.

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Depósito Legal: B. 21.741-98
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Observação importante: o artigo, na totalidade, pode ser lido no site da Revista Geographia Opportuno Tempore, no site www.uel.br/uel/index.php/Geographia/article/view/43155

 

1 http://www.schwartzman.org.br/simon/gurvitch.htm

Elissandro Santana é professor, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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