Por Raquel Moysés.
Bidu viveu as primícias da infância entre vozes e alaridos alegres. Filhotinho ainda foi destinado a viver em uma escola e, mesmo depois de mudar de casa e família, nunca perdeu seu jeito “cachorro criança” de ser. Viveu os primeiros anos no jardim do colégio, em um cercadinho que fizeram para ele, e era todo dia mimado por dezenas de meninos e meninas que com ele talvez tenham aprendido a amar o ser vivo animal como deveriam amar infinitamente os humanos seres.
Mas não era seu destino terminar os dias no pátio da escola, entre afagos de mãozinhas. Como ele crescia e seu porte de dálmata poderia causar algum risco para as crianças, Bidu foi oferecido em sorteio para famílias de alunos da escola que quisessem adotá-lo.
Havíamos perdido tempos antes o Bruce, outro dálmata de olhos doces, e nos inscrevemos para adotar o Bidu. Acabamos sorteados e logo meus pais e minha irmã acolheram em casa o cachorro das crianças.
Com três anos de idade, já adulto para os tempos de vida de um cão, Bidu passou a viver no quintal da casa antiga junto ao mar do Estreito. E logo fincou raízes na vida e no coração de seus moradores.
Ali passou mais sete anos de sua existência, convivendo nem sempre pacificamente com o Plim, outro adotivo da nossa extensa família de cães. Guloso, ele sempre avançava na cumbuquinha de comida do irmão adotivo, que se irritava com sua atitude de moleque atrevido. Com os gatos da casa e dos vizinhos sempre teve seus arroubos de brabeza e a pretensão de reinar.
Os anos avançaram e Bidu nunca perdeu a criancice no jeito de ser. Isso sempre me fez imaginar que talvez fosse a herança deixada no seu espírito canino pela algazarra dos seus pequenos companheiros de primeira infância.
Ele era um cão sociável, desses que abanam a cauda para qualquer recém-chegado. Com o senhor que vinha ajudar na limpeza do jardim, tinha uma ligação misteriosa. Era doido por ele, talvez porque se parecesse com o zelador da escola, que deve ter sido um bom cuidador do Bidu nos seus primeiros anos de vida escolar.
No quintal, tinha pouca iniciativa para afugentar gente suspeita. De natureza impaciente, nascido para correr, talvez se sentisse limitado no espaço do terreno, embora ele fosse quase todo aberto ao seu perambular. Insuficiente, contudo, para sua empolgação juvenil.
O porte altivo talvez viesse de seus antepassados, que em época vitoriana teriam sido cães de carruagem. Com um toque de estilo, acentuado pela vestimenta de bolinhas, os dálmatas iam à frente, atrás ou ao lado do veículo, com a missão de proteger os cavalos do ataque de outros cães.
Ao completar dez anos, o corpo esguio de Bidu deu, porém, os primeiros sinais de que algo não corria bem. Acessos de tosse, respiração dificultosa. E veio o diagnóstico de uma doença do coração. Nosso dálmata combateu bravamente no tempo que ainda teve de vida, acalentado e cuidado com ternura indizível por minha irmã e meus pais. Nada lhe faltou, e ele correspondia com doçura ao devotamento com o qual era tratado.
No longo inverno deste ano de 2013, deixou sua casinha no meio do jardim e passou a dormir no “apê dos gatos”, espécie de edícula que havia sido o apartamento de toda uma geração de doces felinos ronronantes. Tempo permitindo, passava manhãs e tardes ao sol na varanda que circunda a casa, recolhido no almofadão costurado só para ele, aquecido por uma mantinha macia.
Nos dias mais críticos, foi e voltou da clínica. Mesmo debilitado, saía de casa com a mesma alegria com que retornava. Gostava de conviver com as pessoas, e já havia se apegado à médica veterinária e ao tratador de animais que, no dia em que ele se foi, confessou que aquele seu dia tinha “acabado”, estava muito triste com a morte do Bidu.
Foi numa manhã de inverno, quase às portas da primavera, que seu coração de cachorro criança não conseguiu mais lutar pela vida, e ele partiu, deixando no coração de minha irmã um afago de patinha macia.
Bidu foi o último entre os animais que trouxeram alegria para nossa família e nos ofereceram a ternura de sua companhia desinteressada. Mais do que todos, minha irmã sofreu com a viagem definitiva do Bidu para a terra do nunca, reino encantado onde a infância nunca morre. Talvez porque Tânia, como lhe escreveu nosso irmão, igual ao João (o Guimarães Rosa), “sabe ler a alma dos bichos.”
E essa dádiva, disse-lhe nosso irmão Sam, “é um dom divino, reservado para pessoas que se elevam pela bondade e pela vida espiritual concentrada nas esferas sensíveis.”
A ciência já não nega que os animais têm alma e muitos estudiosos têm se dedicado a desvelar este outro mistério relacionado à vida que vive. Porém, mais que entender o enigma científico da alma animal, o que realmente conta é a certeza do amor que, ao longo da vida, nos liga aos bichos, e eles a nós.
João (o nosso Guimarães Rosa) nos deixou o legado de suas palavras que, ternamente, já nos dizem mais do que nos revelaria qualquer pesquisa do mundo dos cientistas:
“Creio, firmemente, que os animais têm alma, e que, algum dia, sob não sei que forma, havemos de rever os nossos – aos quais o amor desinteressado uniu, e, ainda mais, talvez, o sofrimento.”