Por Jair de Souza*
Nas eleições vindouras, a esquerda radical se vê diante de um dilema: dar seu apoio à candidatura de Lula para que ele possa vencer já no primeiro turno, ou insistir em uma linha de atuação independente que mantenha equidistância dos dois concorrentes que aparecem na dianteira das enquetes.
Creio ser difícil responder a esta questão sem que tenhamos clareza do que queremos dizer com o palavreado que estamos empregando. O que significa “ser de esquerda”? E o que vem a ser “esquerda radical”?
Esta terminologia que faz menção à esquerda ou direita com conotação política é uma simbologia originada de uma peculiaridade surgida no transcorrer da Revolução Francesa. Foi quando, por mera casualidade do momento, os delegados vinculados aos interesses dos setores populares passaram a sentar-se na ala esquerda do local onde se reunia a Assembleia constituinte, enquanto que aqueles identificados com as classes dominantes ocupavam o lado direito do mesmo recinto.
Portanto, não faz nenhum sentido falar de “esquerda” e “direita” em contextos e situações políticas anteriores à Revolução Francesa. Embora esta seja uma observação óbvia e sem grande relevância, acho necessário esclarecer a origem destes termos porque, vira e mexe, a gente se depara com manipuladores tentando ludibriar os mais incautos. Não faltam exemplos de líderes religiosos conservadores tratando de justificar seu engajamento com forças antipopulares sob o argumento de que tomam essa posição porque nos Evangelhos está escrito que “Jesus se sentava ao lado direito do Deus-Pai“. Ou seja, pura baboseira.
Também nos seria conveniente tratar do que está por trás da expressão “esquerda radical”. Sem precisar recorrer a profundos conhecimentos de filologia, sabemos que o adjetivo radical é derivado da palavra raiz. Portanto, assim como, por associação histórica com a Revolução Francesa, ser de esquerda significa estar do lado daqueles que desejam transformações sociais favoráveis ao campo popular, um esquerdista radical é alguém que deseja que essas mudanças a favor do povo sejam mais profundas, que não se limitem à superfície.
Mas, voltando nosso enfoque ao cenário que estamos vivenciando em nosso país, não restam dúvidas de que Lula é o principal líder popular do Brasil na atualidade (poderíamos mesmo dizer: no Brasil de todos os tempos). Porém, sabemos também que Lula faz parte de um partido que nem sempre dá demonstrações inequívocas de querer promover mudanças estruturais que visem eliminar as bases de sustentação do sistema político-econômico capitalista. Em seu bojo (no bojo do PT), encontramos militantes e dirigentes com graus diferenciados de compreensão sobre esta questão. Há os que apontam sem titubear para a construção do socialismo, há os que nunca falam disto.
É mais do que evidente que todas as correntes políticas que interagem ao redor de Lula exercem certo nível de influência no curso das mudanças a serem propostas em sua campanha e em sua posterior implantação no governo. São os choques originados destes embates que acentuam ou reduzem o nível de radicalidade do processo no qual o movimento está inserido. Tudo depende, em boa medida, da inserção, do peso, da constância e da capacidade de luta que cada corrente tenha para fazer valer suas posições.
Por outro lado, como as classes dominantes ainda não conseguiram recorrer a alguma artimanha eficaz para aplicação por fora do script legal, vai se consubstanciando entre elas o pressentimento de que Lula será o vitorioso do próximo pleito. Diferentemente de 2018, quando puderam apelar para Sérgio Moro e à Lava-Jato para prender Lula e tirá-lo da disputa, viabilizando assim a chegada de Bolsonaro à presidência, desta feita, não está sendo fácil encontrar uma saída que exclua a participação do ex-presidente como candidato.
Resignadas de que terão de engolir esta presença indesejada na disputa eleitoral, nossas oligarquias estão tratando de se recompor da melhor maneira possível, em conformidade com seus interesses de classe concretos. Portanto, seu primeiro esforço nesta nova etapa da contenda deverá ser no sentido de impedir que a eleição de Lula se dê logo no primeiro turno. Ao adiar a decisão para uma segunda rodada, a grande burguesia e seus associados esperam poder exercer com mais eficácia seu poder de pressão e coerção para obrigar Lula e seu futuro ministério a não extrapolarem os limites do tolerado, ou seja, impedi-los de efetuar mudanças radicais.
Entretanto, na eventualidade de que este plano fracasse e Lula seja mesmo eleito de imediato, seria desejável para essa “gente de bem” que seu percentual de votos não fosse tão elevado a ponto de deixar transparecer que a nação em conjunto o estaria avalizando. Dito de outra maneira, quanto mais elevado for o percentual de votos alcançados por Lula, menor será a possibilidade de as classes dominantes exercerem seu poder de pressão e domesticação sobre seu novo governo, e vice-versa.
Em vista do quadro que pintamos nas linhas precedentes, os militantes ou simpatizantes da chamada esquerda radical não podem ficar indiferentes em relação às duas candidaturas que disputam de fato a presidência. Nenhuma organização política da esquerda radical pode sinceramente acreditar que para o povo brasileiro vai dar na mesma se a contenda for vencida por Lula ou Bolsonaro.
É inegável que em certas situações históricas, a não tomada de posição por parte das forças de esquerda pode ser uma atitude correta. Isto ocorre quando elas contam com estrutura e articulação capazes de viabilizar seu avanço em decorrência dos desgastes mútuos ocasionados nos embates travados entre si pelas outras forças políticas. Porém, na realidade brasileira atual, não existe nenhuma possibilidade de a esquerda radical e o conjunto do povo trabalhador virem a tirar proveito e fazer avançar as lutas por transformações radicais, caso a candidatura de Lula venha a ser derrotada ou, então, com a constituição de um governo Lula enfraquecido.
A fragilidade deste novo governo só iria servir para que as classes dominantes ganhem ainda mais poder para impor as agendas de seu interesse, seja avançando com as privatizações, com a retirada de direitos trabalhistas, com o aniquilamento de conquistas sociais do passado, etc. No presente momento e na atual conjuntura, tão somente os representantes do grande capital estão em condições reais de levar vantagem diante da fraqueza de um governo como o que vai despontar das próximas eleições.
Em outras palavras, um revigoramento do domínio político dos representantes do grande capital decorrente do desgaste do novo governo popular acabaria por redundar na inviabilização de transformações radicais de base por um longo tempo. Na vida real, não existe isto de “quanto pior, melhor”. Derrotas sofridas contra as forças reacionárias costumam significar muitos anos de sofrimento para a classe trabalhadora. Muitos novos sacrifícios passam a ser necessários para recuperar direitos que já tinham sido conquistados há bastante tempo. Falamos de derrotas e não de vitórias.
No entanto, empenhar-se na luta por uma vitória substancial de Lula já no primeiro turno não equivale a apoiar acriticamente sua campanha e seu programa de governo. Nada disto. É de fundamental importância que as forças de esquerda, em especial a dita esquerda radical, estejam permanentemente dedicadas a pressionar o governo para direcioná-lo no rumo da conquista das aspirações populares.
Seja integrando a aliança formal de apoio à candidatura de Lula, ou atuando com independência desde fora, os militantes da esquerda radical e suas organizações não podem se isentar em relação às prioridades de vida do povo trabalhador. Uma vitória retumbante de Lula já no primeiro turno com a participação efetiva e constante de toda a esquerda radical neste processo vai abrir as portas para conquistas futuras.
Sendo assim, nesta etapa da luta, a derrota política do fascismo e de sua expressão econômica, o neoliberalismo, é uma obrigação moral para todos os que se identificam como parte da esquerda. E no que diz respeito à esquerda radical, estes compromisso e dever morais ficam ainda mais ressaltados.
Por isso, trabalhar com afinco para uma votação expressiva que resulte numa vitória imediata e contundente de Lula, assim como na eleição de uma grande bancada legislativa de cunho popular para apoiar as medidas do governo em favor do povo e se contrapor às pressões em sentido contrário, é uma obrigação para todos os que se sentem comprometidos com o destino de nosso povo. Esta é uma tarefa que cada militante da esquerda radical deveria assumir como sua prioridade.
Nossa radicalidade deve ter como meta abrir caminho no rumo de uma sociedade nova, sem a exploração do ser humano pelo ser humano. Até que ponto deste objetivo o novo governo encabeçado por Lula vai chegar é algo que vai depender dos esforços que todos nós venhamos a realizar. Ficar indiferente neste momento é tomar partido dos grandes exploradores de nosso povo.
*Economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ
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