A dor de caminhar por Desterro. Por Viegas Fernandes da Costa.

    Caminhar pela cidade é ler Desterro, suas contradições, esquinas e escadas. Mesmo neste domingo de jogo do Avaí na Ressacada, a cidade com suas ruas vazias pulsa e dói. Na Tiradentes, cujos paralelepípedos estão ameaçados, há a marquise que abriga os humanos sem pedra para chamar de sua, ali, tão perto da antiga redação do Folha Nova onde atiraram em Crispim Mira no distante 1927. Atirar na boca de um jornalista nunca será acidente, e quem atravessa estas pedras centenárias não suspeita do crime que por aqui calaram. Não há placa, não há memória.
    A Desterro de hoje quase não possui mais redações de jornais, e o Avaí disputava seu passaporte para a primeira divisão do futebol brasileiro quando atravessei a Tiradentes para comprar o pão na única padaria aberta no domingo à tarde na região leste da área central. Comprar o pão é a razão que me leva a passar pela marquise e ver a mulher que dormia sobre um papelão na calçada. Próximo a ela, disputando a sombra da mesma marquise, alguns jovens estudantes. O prédio abriga uma faculdade, e os estudantes recém saídos do Enem consultavam seus celulares. Cheios de sonhos, estavam alheios à humana deitada ao lado, sem sonhos. O ingresso para o futuro nos resultados de uma prova. E a mulher, qual sua história?

    Tiradentes é rua antiga de Desterro, existe desde os tempos em que a maresia ainda lhe lambia os seixos. Calçaram-na de pedras, afastaram-lhe o mar. O samba ainda está por aqui, disputando espaço com o rock e o punk. Alguns dos antigos sobrados que no antanho serviam de lar para sóbrias famílias, hoje vendem prazer barato. Já foi a rua da Cadeia, da Constituição, mas nesta tarde de domingo, em que parte da cidade torcia pelo Avaí, era a rua onde Desterro pulsava e doía sob uma mesma marquise. E porque quase não há mais redações de jornais, e porque as poucas redações ainda abertas estão ocupadas em noticiar uma vitória no futebol, talvez escrever sobre comprar pão e caminhar em rua antiga também não seja crônica apropriada para uma cidade que discute pedras e mata humanos cujos sonhos foram roubados.
    Amanhã será segunda-feira, as padarias estarão abertas desde cedo, não haverá placas, não há memória.

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