A destruição subiu a rampa. Por Vilmar Debona.

Foto: Evariste Sa/AFP

Por Vilmar Debona.

No Brasil, acordei em 9 de janeiro de 2023 com o cantar dos pássaros e com o sol demorado cruzando a janela. Abri a janela e a porção de mar que ela permite estava serena. Estava tão serena e calma a ponto de ser candidata a uma das imagens da não-violência. Não havia ondas porque nem vento havia. Era só o azul pacífico do Atlântico sob um céu de igual azul.

Pensei que essa primeira imagem do dia seria suficiente para representar o abismo com o dia de ontem. Pois ontem, em Brasília, a destruição e a violência tomaram posse. Subiram a rampa e destruíram quase tudo. Mobílias dos palácios também, mas principalmente símbolos de luta e resistência nacional contra a barbárie.
Fazia só uma semana que, em 1º de janeiro, a resistência e a esperança tinham subido a mesma rampa. Foi o dia mais pleno de significados para a cambaleante democracia brasileira. Foi, para além disso, o evento mais emocionante da minha vida.

Mas, ontem, desocupados, fanatizados e, acima de tudo, financiados por empresários bolsonaristas e ajudados pela polícia, destruíram peças-símbolos que registram o árduo processo pretensamente democrático do povo. Por exemplo: parece que a peçonha daqueles seres asquerosos tocou até mesmo o exemplar original da Constituição cidadã! Tocaram, quebraram e desfiguraram inúmeros objetos de valor simbólico e histórico. Únicos, pois só esses objetos materializam, no tempo e no espaço, o que somos enquanto brasileiros e o que as memórias daquelas e daqueles que por nós lutaram não nos alcançou para testemunhar.

Pensei também que, se a mim coubesse iniciar o dia encarregando alguém de algo, encarregaria de imediato historiadoras e historiadores de uma tarefa desafiadora: registrar a dimensão do abismo vivido por aquela rampa e por aquela praça entre 1º e 8 de janeiro de 2023. Desafiadora não porque seja difícil concatenar os fatos, aplicar categorias de causalidades para dizer as causas dos efeitos, mas porque sequer categoria há. “Neofascismo” a la brasileira bastaria? Ou a trivialidade de “vandalismo”, como utiliza parte da imprensa?

Daí por que, para dizerem o que se passou – e quem passou – naquela rampa entre 1º e 8 de janeiro de 2023, historiadores precisão se juntar a sociólogos, cientistas sociais e cientistas políticos; precisarão se juntar a filósofas e filósofos e repensar categorias para só depois, quem sabe, preenchê-las.

Ia pensando essas coisas quando li no WhatsApp a mensagem de um amigo e colega. Dava conta de que seu filho de dois ou três anos já aprecia obras de arte, e admira os quadros de Di Cavalcanti. Di, o grande pintor e muralista brasileiro, foi uma das vítimas dos odiosos que subiram a rampa ontem, concretizando um tipo de desfecho previsível e não levado a sério. Pelo o que entendi dos noticiários, um daqueles seres asquerosos sacou uma faca e esfaqueou um painel de Di Cavalcanti do Palácio do Planalto. Foi uma destruição específica e extremamente simbólica em meio à destruição como um todo.

Concluí, então, duas coisas: que para narrar o que se passou em Brasília entre 1º e 8 de janeiro de 2023, mas em especial para registrar a destruição inusitada do dia 8, ainda não contabilizada por completo, historiadoras e historiadores precisarão escutar também os artistas e o filho do meu amigo; e que a minha imagem matinal, ao abrir a janela, não era suficiente para representar o abismo com o dia de ontem.

Florianópolis, 9 de janeiro de 2023.

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