Por Joana Suarez, para Revista AzMina.
Depois de passarem a noite inteira numa roda de Jongo, mexendo o corpo, batendo os tambores, invocando energia — com cantos curtos e palavras certeiras —, no dia seguinte, estão refeitos, prontos para enfrentar mais uma semana. A cultura afro-brasileira fortalece e alegra o povo preto desde os tempos cruéis da escravidão.
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“Era na roda de Jongo que o povo preto se refazia, depois de muito lenhada, porque no outro dia tinha que estar de pé. A cultura é o INSS do povo preto escravizado”, empretece Laura Maria dos Santos, 63 anos, mestra de Jongo, manifestação popular do Quilombo Campinho em Paraty (RJ).
Laura é educadora popular quilombola e luta para valorizar a tradição jongueira, sabida de que a intenção dos que querem enfraquecer a cultura negra é dominar o seu povo. “O capitalismo branco quer que você trabalhe o tempo inteiro, quer um corpo que obedeça e consuma seus produtos”, afirma a mestra.
A cultura negra pensa o ser humano integralmente: “o que faz bem pro espírito, faz bem pro corpo e pra mente”, destaca a cantora Nina Fola, que se identifica como mulher preta, de terreiro. Ela e Laura concordam que a branquitude separa o médico para cuidar da saúde, o padre para a fé, e a diversão é outra coisa. “Para nós, não há separação entre sagrado e profano”, acrescenta Nina.
É preciso muita resistência para descolonizar o saber, a história e a cultura no Brasil. As mulheres negras sempre fizeram isso, buscando e ocupando espaços. AzMina ouviu lideranças das cinco regiões do país que, a partir de suas raízes afro, se expressam em alma e arte nos quilombos, nos terreiros, nas ruas, nos palcos e nas universidades.
POTÊNCIA DE PONTA A PONTA
Quando foi escravizado no Brasil, o povo preto encontrou seu jeito de sobreviver ao sofrimento, de se manifestar e se autolibertar. As culturas e manifestações populares sempre tiveram essa função, mas mudam de nome em cada região do país e ganham características próprias.
No Rio de Janeiro tem o Jongo, primo do Samba; em Pernambuco, o Maracatu e tantos outros; na Paraíba, o Coco de Umbigada; na Bahia, a Capoeira; no Amapá, o Marabaixo; no Maranhão, o Cacuriá e o Tambor de Crioula, em Minas Gerais, o Congado, e muito mais espalhados pelos quilombos brasileiros.
Novas culturas negras também vão se somando com a modernidade e a contínua necessidade de protestar, a exemplo do rap e do funk. A ancestralidade e a resiliência do povo preto atravessam também a poesia, a literatura, a dança, a música, o cinema, a arte, o grafite, e todas as formas lúdicas de manifestar a força e a sabedoria africana.
Além da mestra Laura do Jongo, do Quilombo Campinho da Independência em Paraty (RJ), no Sudeste, entrevistamos a sua xará Laura Ramos, que lidera o Marabaixo de Macapá (AP), Norte do Brasil — cultura popular também embalada por tambores, palmas e pisadas, como no Jongo. No Nordeste, em São Luís do Maranhão, Rosa Reis comanda o grupo Laborate, e nos conta sobre o sagrado e o profano do Cacuriá e o Tambor de Crioula.
Na outra ponta do país, quem escuta a cantora rio-sul-grandense Nina Fola, da banda Afroentes, percebe em seu canto contemporâneo a energia ancestral e ativista, voz que ela faz questão de levar para o ambiente acadêmico. Espaço esse também ocupado por Lupita Amorim com sua poesia atual e corpo preto trans dançante em Cuiabá (MT), Centro-Oeste brasileiro.
“A academia quer nos colocar como objeto de estudo, mas a gente faz a narrativa de disputa do conhecimento”, explica Nina, reforçando que as tradições culturais negro-africanos ou afro-indígenas são grandes produtoras de conhecimento de resistência para essas populações.
DE BISAVÓS E AVÓS PARA FILHAS E NETAS
As culturas populares são transmitidas nos núcleos familiares, repassadas como tradições, religiosidade e brincadeiras. São as famílias e suas comunidades que não deixam a manifestação morrer, e isso nunca dependeu de governo algum. A criança que nasce em uma cultura quilombola tem sempre uma referência a se espelhar. É algo ensinado por muito tempo, que não pode deixar de ser alimentado. Afinal, resume Laura do Jongo: “torna-se uma concepção, um pensamento, uma filosofia”.
Após concluir o curso superior de Pedagogia aos 60 anos, ela constatou que o que lhe formou mesmo na vida foram os aprendizados que teve na infância e no movimento social, no seio da família e da cultura. “Quando a gente reconhece isso, passa a valorizar mais as nossas raízes, os saberes da oralidade, da vivência e da escuta.”
Na roda de Jongo, quem abre os trabalhos da dança são os mais idosos: um casal vai ao centro e começa a rodopiar solto, se movimentando para dentro e para fora, repetidas vezes, e a dança segue com pisadas no chão, abrindo os braços, rodando a saia. As pessoas ao redor seguram o ritmo na palma, tambores e percussão.
“A percussão é um som que faz vibrar outro som, e esse som é sentido no nosso coração, faz vibrar o corpo, percute”, explica a mestra jongueira. Nessas rodas, são entoadas falas que vão se tornando um mantra. “Você perde a noção do tempo, passa a noite inteira jongando sem sentir, até se refazer”, conta Laura. Só entende realmente o significado do que é dito ali quem tá passando por aquela situação, e esses cantos vão se modificando conforme a época e a região.
A mestre já formou várias gerações de jongueiras no Quilombo Campinho de Paraty, que tem uma história de mulheres fortes como a mãe de Laura, Pedrina Belmira, que foi mãe solo em 1959, numa época muito difícil para as mulheres. O matriarcado do Campinho foi narrado no livro tese de doutorado “Terra de pretos, terra de mulheres”, de Neusa Gusmão.
Música – Jongo 23 anos: Quilombo Campinho
O gente, nasci na Angola
Angola quem me criou
Eu sou filho de Moçambique, meu deus do céu
Eu sou negra, sim senhor
….
Minha mãe é uma sereia
mora no fundo do mar
eu também sou filho dela, meu deus do céu
moro no mesmo lugar
COLETIVIDADE AMOROSA
O amor e o compromisso com a comunidade são comuns entre mulheres negras que participam de movimentos sociais. Assim que Lupita Amorim, 24 anos, entrou para a graduação em Ciências Sociais como cotista na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), tornou-se coordenadora geral do Coletivo Negro Universitário — campus Cuiabá.
Lupita se reúne todas as segundas-feiras com o coletivo. “A gente também está ali pensando no nosso bem viver. Quando a gente percebe que o clima está ruim, a gente lê uma poesia e aí as coisas mudam.” A poesia permite que ela atraia atenção e dialogue de forma diferente, conta Lupita. O que a anima, no momento de cansaço e de muitos enfrentamentos, é perceber essa coletividade afetiva, tanto no movimento social, quanto na sua família.
Hoje, ela representa estudantes LGBTQIA+s, dividindo a vida entre universidade, militância e arte. A partir de movimentações políticas, pauta urgências da população travesti preta — como ela —, pobre e periférica. Lupita sempre gostou de dançar e atuar e, por sofrer muita violência, os espaços de arte eram onde as pessoas conseguiam lhe aplaudir, “por mais que elas rissem de mim em alguns momentos”, desabafou.
Ela é a primeira da família a entrar na universidade e reconhece todo o esforço e trabalho da bisavó, da avó e da mãe para que ela ocupasse aquele ambiente. “Eu também quero que as pessoas como eu se sintam pertencentes ali ao ler as minhas poesias, ao me ver dançando, atuando ou mesmo dando uma palestra.” Esse ano (2022), Lupita foi convidada a conduzir uma live de boas-vindas aos estudantes da UFMT, e encerrou sua fala com poesia:
Prontidão (Lupita)
não estou pronta, mas quero estar preparada
angustiada talvez, não parada, incerta pelo que vem
quebrando todos os muros que me detém
fadiga não me abala
palavras cruéis lançadas não me param
sensação de impotência
como enfrentar eu lidando com as minhas potências?
estou preparada, estudada e armada
tenho medo, mas não o suficiente pra não fazer nada
Nila Fola também transita entre a arte e a academia, sem saber muito bem onde começa um e termina outro. Para construir sua música contemporânea, mistura bases eletrônicas a tambores e ladainhas da capoeira, em uma pegada afrofuturista. “Quando escuto axé no meu terreiro, eu penso que aquilo pode virar uma música no palco.” E as letras de Nina, apesar de não serem sempre cartas explícitas de denúncias como no Jongo, são uma evidência da presença negra nas relações sociais.
No mestrado em Sociologia, Nina pesquisou ‘Poder e política sob o ponto de vista de mulheres de terreiro do Rio Grande do Sul’. Atualmente ela faz seu doutorado sobre a produção de conhecimento nas casas de batuque, “espaços de terreiros que fazem o tempo todo esse embate contra-colonial”, descreve.
Nina Fola: Herói Africano
Quantas vezes nascerá e renascerá
Resistência, vida e coragem
Fez esse herói para sempre
O que vamos falar agora é verdade
O Herói não morreu, está presente
Quantas batalhas enfrentou e enfrentará
Traição, golpes, navios, desrespeitos
Desumano era o tratamento
Desalmado o negro era tomado
por quem dizia acreditar no supremo
…
A falta de conhecimento de suas histórias e origem deixa um povo facilmente manipulável. Para se defender, o povo negro registrava sua luta em composições de cultura popular, como nas cantigas de ladrão, do ritmo Marabaixo — manifestação tradicional de Macapá (AP).
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Os precursores do Marabaixo “roubavam” as cenas do cotidiano (por isso “ladrão”) e compunham canções relatando o que viam acontecer, mesmo sem saber ler e escrever. Eram como se fossem meios de comunicação na cidade à época. As letras antigas eram verdadeiras sátiras do sofrimento, como a que conta a história de higienização urbana da capital amapaense.
A música de Marabaixo “Aonde Tu Vai Rapaz” retrata como os negros foram injustamente expulsos da frente da cidade de Macapá pelo então governador, e assim formaram o bairro Favela, hoje chamado de Laguinho.
Aonde Tu Vai Rapaz – Marabaixo
Aonde tu vai rapaz
Nesse caminho sozinho
Eu vou fazer a minha morada
Lá nos campos do Laguinho
…
A Avenida Getúlio Vargas
Tá ficando que é um primor
Essas casas foram feitas
Pra só morar os doutor
A poesia oral marabaixeira é musicada nos toques das caixas, instrumentos de percussão produzidos pelos tocadores. E o ritmo é dançado em rodas de cirandas, circulando no sentido anti-horário, para que se volte à ancestralidade, ao passado. O nome Marabaixo vem dos movimentos das ondas nos navios que vinham da África com pretos escravizados, que dançavam amarrados em correntes e cantavam os lamentos.
“Eu me manifesto como negra através do toque do meu tambor, do entoar da minha voz, dos versos ladrões. Posso dizer o que quero, onde me dói, os males que nos afetam”, entoa Laura do Marabaixo, 48 anos. A mestra marabaixeira explica que o ritmo amapaense tem feito fusão com o reggae, o pagode e outros batuques, e tem se atualizado, ganhando novas denúncias, e atraído a juventude.
ESVAZIAMENTO E A DESVALORIZAÇÃO
Entre as mulheres ouvidas pela reportagem, uma grande preocupação é cuidar da cultura com responsabilidade para que ela não se volte apenas ao capital. Todas as manifestações populares se apresentam para turistas, como espetáculo, e são fonte de trabalho e renda de suas comunidades. Mas o dinheiro, como diz a quilombola Laura Santos, é uma energia que deve-se aprender a lidar.
Na pandemia, as pessoas que vivem da cultura precisaram se adaptar, fazer apresentações em lives. Foi um período muito difícil, por se tratar de um movimento de corpo e alma, de encontro e energização, a presença fez falta. Soma-se a isso a omissão dos governos e nossa sociedade racista, que não valoriza seu povo, esvazia sua cultura e sua história.
Uma das formas de esvaziamento é a exploração dos corpos negros. Lupita Amorim diz que, no Mato Grosso, a parte cultural é majoritariamente realizada por pessoas pretas, periféricas e LGBTs, mas, quando se fala de remuneração e reconhecimento, as brancas ainda são priorizadas. Muitas vezes querem que eles se apresentem e não se preocupam em ter um cachê. “A gente transforma nossa vivência em arte e a gente precisa da remuneração para sobreviver”, reforça.
A capital do Maranhão, São Luís, tem 70% da população declarada preta e parda, mas é uma busca diária fazer as pessoas reconhecerem que a cultura popular merece ser paga. A Festa do Boi e o Tambor de Crioula, pano de fundo das cenas de estreia da novela “A Travessia”, da Rede Globo, é apenas uma das várias manifestações culturais maranhenses. O estado é um celeiro de movimentos de dança, música e resistências negras.
Faz pouco tempo que grupos de manifestações populares do Maranhão nem recebiam cachês, iam se apresentar por uma bebida, uma comida, como contou Rosa Reis, 63 anos, cantora e dançadeira do tambor. “A gente está todo tempo lutando para ser reconhecida como mulher negra que faz a cultura tradicional.”
O tambor de crioula são três tambores e uma matraca, mas sempre foram os homens que tocavam, botavam os versos, e as mulheres só dançavam, mas agora elas também estão tocando. E tem o Cacuriá, também característico da região, que se apresenta na festa católica do Divino Espírito Santo (sete semanas após a Páscoa), em sincretismo com os terreiros. Mulheres caxeiras, que tocam o instrumento de percussão caixa, fazem a parte profana do festejo religioso, com a brincadeira depois das rezas e promessas ao divino.
A dança é irreverente, com muito rebolado e contatos entre os casais. É nesse embalo que as maranhenses se libertam de todos os preconceitos. “A gente percebe que as mulheres que participam do Cacuriá vão se fortalecendo a cada ensaio, a cada apresentação”, indica Rosa, que coordena o grupo Laborarte há 40 anos e também o Cacuriá de Dona Teté. As mulheres têm um papel fundamental de luta nas manifestações. “Nós já fomos muito massacradas, temos dificuldades às vezes de nos expressar, e a cultura ajuda bastante nisso.”
Mariquinha – Cacuriá de Dona Teté
Mariquinha morreu ontem,
ontem mesmo se enterrou,
na cova de mariquinha
nasceu um pé de fulô
…
Vou me embora, vou me embora
Aqui eu não vou ficar
Que estes meus companheiros
Tem intenção de me matar
…