Por Janaína Machado com colaboração de Helô Petry, para Desacato.info
As almas plásticas das duas artistas, Paula Schlindwein e Grabriela Goulart, pareciam já estarem traçadas há muito tempo, com semelhanças em desenhos rabiscados nos tempos de crianças, onde as duas gostavam de esboçar corpos e retratos femininos, mesmo sem se conhecerem. Semelhança ou conexão, algo uniu essas duas mulheres que, em um bate papo descontraído, nos contam um pouco de suas trajetórias, lutas, artes e como o feminismo faz parte de suas vidas.
Para Gabriela, a arte está presente desde os quatro anos de idade, ela sempre estava desenhando, pintando e na maioria eram figuras femininas. Houve um tempo de afastamento das funções artísticas, bloqueada por um relacionamento abusivo e com opressões, sendo proibida de fazer o que se sentia bem fazendo. Neste tempo estudou outros assuntos, tornou-se mãe e só voltou a dedicar-se às artes plásticas novamente sete anos depois. O feminismo mostrou-se presente pelas vivências e enfrentamentos de seu cotidiano e é demonstrado em suas obras como um grito dela própria e de todas as coisas que vivemos e sentimos enquanto mulheres.
‘’Sempre pintei mulheres, as dores, as angústias e também as alegrias de ser mulher. Gosto de mostrar a dor e a delícia de ser mulher.’’
Paula, que também se identifica com o tema feminino desde criança, retratava na maioria das vezes corpos e retratos nus que tinham que ficar escondidos, por sofrer repressão familiar e o conteúdo de seus desenhos serem considerados tabus. Foi criada dentro de um contexto familiar muito machista e religioso, onde a mãe lutou muito contra isso, o que fez ela ver esse fato como um dever de lutar junto, como uma barreira que precisava ser vencida. Paula também ficou sete anos sem desenhar, fez biblioteconomia na UFSC e com o incentivo de seu marido começou a pintar novamente e a participar de algumas exposições. Enquanto morava em Brusque, suas obras com os temas voltados as mulheres sofriam muita crítica e acabavam na gaveta. Ao se mudar para Florianópolis, decidiu libertar essas obras e passou a não mais se preocupar com o fato de mostrá-las.
”Eu passava para o papel algo que retratasse a minha história, minha própria vivência, para me entender. Os desenhos eram uma forma de conexão com o mundo, uma forma de me comunicar.”
O encontro das duas companheiras das artes aconteceu em uma exposição na FAF – Feira de Arte de Florianópolis – onde elas eram vizinhas de mesa. Tendo observado a obra uma da outra, sentiram um reconhecimento recíproco sobre a expressão e afinidade de suas obras. Perceberam que tinham a mesma linha de pensamento, voltado para a libertação feminina. Em seguida, surgiu a proposta do Bar Tralharia – onde já aconteceram duas exposições de artistas homens – de receber a exposição com tema voltado para o feminino, e a ideia foi muito bem vinda entre as artistas.
”Sempre que desenhamos uma mulher, seja de qualquer cor, sempre é a gente, sempre é a nossa história.’’
Como ocorreu essa junção entre o feminismo e a arte no trabalho de vocês?
Paula: Mesmo sem entender o que era o feminismo, ele já existia dentro do meu trabalho, eu não quero ser artista feminista, o meu eu é uma luta pelo direito a mulher e isso sempre existiu dentro de mim. Dentro de casa, com as minhas amigas, em contexto familiar, eu sempre fui vista como a defensora das mulheres ou ‘a do contra’, o desenho era a forma que eu utilizava como comunicação.
Gabriela: Tinha uma época que eu fala que gostaria de ter nascido homem, hoje eu entendo que, na verdade, eu só queria ter nascido com os mesmos direitos. Expor a necessidade de ser livre, pois não somos totalmente livres, é o que impulsiona meu trabalho.
Esse projeto empoderador leva o título de ‘Conexões Viscerais’ que surgiu primeiramente com Gabriela, que já tinha a palavra ‘conexões’ em mente, por sentir uma ligação muito forte com o trabalho de Paula e, mais tarde, a vivência que tiveram juntas na exposição de Frida Kahlo que proporcionou conexões entre diversas mulheres e compartilhamentos importantes. Em seguida, uma conversa com a amiga de Paula, Silvia Teske, ocorreu a compreensão da sintonia que há entre Paula e Gabriela, que não foi apenas um encontro, mas sim uma conexão e o trabalho é algo além de parceria, é algo visceral, “são as tripas para fora”.
”A exposição ‘Conexões Viscerais’ foi a exposição em que mais rolou emoção e uma energia tão legal, várias mulheres procuravam a gente, várias mulheres se emocionaram, vieram nos abraçar e nos contavam algum trecho de sua vivência, por se identificarem com nosso trabalho, compartilhavam coisas muito íntimas que não se contaria para ninguém e eu sou uma estranha para essas mulheres. Então percebi que ali não estava só a minha vivência, a minha dor ou a minha alegria, estava também, pedacinhos da vivência de outras mulheres.’’
– Paula Schlindwein
Qual a importância do feminismo dentro da arte?
Gabriela: Na história da arte há uma lista enorme de homens, com isso conseguimos perceber que por muito tempo as mulheres foram podadas, houveram épocas que não podíamos nem estudar, ter acesso a informações. Antigamente o papel das mulheres na arte era no máximo para ser modelo de quadros, quando as mulheres entraram na área acadêmica de artes, elas não podiam fazer pinturas como o expressionismo – como muitos artistas homens que retratavam a prostituição faziam – para as mulheres as pinturas deveriam ser voltadas para as paisagens, natureza morta, frutas, retratos de familiares, pois o lado artístico da criação e ilusão os homens que eram engajados a reproduzir. Na minha arte usar o feminismo é me enxergar engajada com o papel social em empoderar as mulheres, transmitir forças para alguém que olhe a obra e sinta coragem para ter alguma atitude frente a opressões. Minha arte é para o empoderamento das mulheres.
Paula: É dar a voz de alguma forma, mesmo não sendo escrita ou falada, mas dar voz a mulher é uma forma de eu mostrar ao mundo, ou as outras mulheres em geral, que nós temos valores, que somos fortes e que unidas nós podemos muito mais. Não queremos um mundo onde as mulheres dominem, assim como muita gente acredita que é o feminismo, na verdade ninguém quer ser mais, a gente quer igualdade, a gente quer ter o mesmo direito que todos, somos humanos, então, que a humanidade toda tenha os mesmos direitos. Existem muitas barreiras, por exemplo, se algumas imagens forem expostas em determinados lugares, as pessoas podem achar ofensivas e é somente um desenho, enquanto na televisão aparecem cenas explicitas e ofensivas e que são assistidas pelas famílias e as crianças, mas se verem um pênis ou uma vagina desenhada, isso é levado até como pornográfico e vulgar, é muito contraditório.
Vocês já sofreram alguma opressão por serem artistas mulheres?
Gabriela: Existem muitos conceitos e estereótipos errados e enraizados na sociedade, como por exemplo, -ah, você desenha somente mulher, então você é lésbica. Ou então, quando fiz uma colagem para o ‘Catarinas’, onde escolhi algumas vaginas e clitóris para expor e um cara me questionou: -nossa, que buceta feia essa que você escolheu! E eu respondi: – em primeiro lugar, não existe buceta feia, assim como não existe pau feio, cada um tem o seu, e isso que você está fazendo é completamente machista, pois existe um monte de mulher que tem vergonha de ficar nua na frente de um homem, ou que não sente prazer por causa desse tipo de comentário.
Então existe esse tipo de enfrentamento nas artes, e é mais uma das tantas lutas que temos que enfrentar entre mulheres. Mas isso que fazemos faz parte da desconstrução que somos, mostrar nosso trabalho e não estarmos nem ai para o que estão pensando.
Paula: As vezes até em silêncio, medem com o olhar, o trabalho que fizemos e depois nos medem para saber quem são as artistas. O olhar fala mais alto que palavras, existe uma medição da artista pelo trabalho e talvez com homens não exista isso. Mas achamos bom que incomode, nós queremos incomodar, pois se a pessoa não se identifica, mas ela se incomoda, já é alguma coisa, existe algo na pintura que a fez refletir.
A visão de feminilidade que é enfatizada em suas obras é pelo respeito a individualidade de cada mulher, tirando a objetificação do corpo feminino que é tão padronizado culturalmente, expondo a beleza diversificada em cada traço.
”Não tem feio ou não tem bonito, não tem regras no corpo da mulher, quando desenho quero transmitir que aquele ser é especial por suas individualidades e isso deve ser visto na vida de todas as mulheres.”
-Gabriela Goulart
Existem referências em outras artistas como inspiração para este projeto?
Gabriela: Sim, muitas e as muitas vezes nem são artistas plásticas e nem somente mulheres. Me identifico muito com cantoras como Rita Lee, Cássia Eller, mulheres brasileiras de todas as vertentes. Muitas mulheres nos inspiraram e abriram o caminho para essa luta.
Paula: Quando eu era mais nova, eu ia procurar em bibliotecas referências que fossem de mulheres e eu nunca encontrava, era muito difícil, achei primeiro artistas de fora, uma das que me identifico é Frida Kahlo, Pagu, Anitta Malfatti, mas não era muito falado sobre as mulheres, eram mais conhecidos as artistas masculinos, a internet que facilitou o conhecimento de outras artistas.
Em algumas obras há a presença sutil e delicada de bordados com linhas, misturando-se com órgãos vitais e símbolos da natureza. Elas trabalham com sobreposição e esse dinamismo vem desde a infância das duas, Paula que gostava de bordar e Gabriela que fazia colagens com folhas e plantas, de modo que já sentiam uma grande afinidade com a natureza na arte. As raízes familiares também foram um grande impulso para essa prática, Gabriela tinha sua avó benzedeira, que transmitia grande contato com a medicina natural e Paula conta com uma ligação muito forte com as figuras femininas de sua família, pela luta individual de cada uma delas.
”Eu olho para a natureza e vejo feminilidade, vejo uma flor que parece uma vagina, então isso é muito intrínseco, a natureza é feminina, ela gera e quando retrato uma mulher deslocada, é porque assim que me sinto, deslocada de algo natural que nos tiraram.’’
-Gabriela Goulart
”Minha mãe e minha avó me passaram a força, a coragem para lutar. Então as raízes nas pinturas também surgem dessas raízes familiares.’’
-Paula Schlindwein
Segundo as artistas, em Florianópolis está começando a se criar uma cena artística mais forte, com a revitalização do centro, que está favorecendo o acontecimento de feiras urbanas e começou a gerar o interesse da sociedade para esse meio, que o torna mais acessível e popular. A presença de crianças nas exposições, sem pudor e com inocência está retratando que o espaço está sendo aberto.
”Para as mulheres é uma cena nova e estamos ajudando a construir, me sinto fazendo parte dessa construção.’’
-Gabriela Goulart
As obras retratam com grande força e delicadeza histórias de lutas vindas das vidas das artistas e que também fazem parte do cotidiano de muitas outras mulheres. A partir disso, sugeri para que elas imaginassem uma obra e me dizerem qual a essência que a pintura transmitia para quem a olhasse.
Gabriela escolheu ‘Lágrimas Púrpura’ que retrata um rosto feminino, com olhar triste, fixo ao do espectador que o observa e com abundantes lágrimas que em cor escorrem ao seu rosto.
”Na tua dor tem beleza, moça. No retrato ela está com um olhar triste, chorando e te olhando, porém a lágrima dela é roxa e é linda uma lágrima roxa, então tem dor, tem espinho mas também tem força. Na tua dor você fica forte’’
-Gabriela Goulart
Paula escolheu seu auto retrato ‘Metamorfose’ que emocionada nos contou que aquela obra fazia parte de uma fase de profunda luta em sua vida e não é somente o retrato dela, mas também de muitas mulheres.
”Meu olhar está uma incógnita, triste e ao mesmo tempo introspectivo e eu quero dizer que, por pior que seja a situação, tu consegue seguir em frente, tudo é possível, as vezes tu não encontra felicidade em alguma coisa e nos decepcionamos, ou está numa alegria imensa e algo acontece que nos deixa no chão, mas se der um passo por vez, por mais que doa, um passinho pequeno já vai fazer a diferença, vai tomando outro rumo e a vida pode florescer de uma forma inesperada e diferente.’’
-Paula Schlindwein
O projeto ‘Conexões Viscerais’ vai até o dia 03/08/16 e tem planos para seguir em frente, o acontecimento de conexões mútuas entre as artistas e mulheres que tiveram forte identificação com as obras tem sido um grande impulso para dar continuidade à este belo trabalho. Segundo as artistas, o projeto proporcionou uma união feminina entre desconhecidas e semelhantes e daí surgiu a vontade de levar a exposição para outros lugares para que mais pessoas vejam e se sintam reconhecidas e motivadas, com mais forças para os confrontos diários da vida de uma mulher.
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