Nesse momento, em função do agravamento da crise mundial, os países de capitalismo atrasado enfrentam uma verdadeira guerra econômica, com origem nos países imperialistas, visando destruir o excesso relativo de bens de consumo e de forças produtivas nesses países, de forma a abrir um novo ciclo de valorização do capital ao nível internacional. Os Brics (bloco que reúne Brasil, Rússia, Índia e África do Sul), se encontram no meio dessa disputa histórica, porque a política de soberania, mais ou menos exercida pelos países que compõem o bloco, entra em rota de choque com a política de dominação imperial, especialmente advinda dos EUA.
As ações dos EUA, para enfrentar os efeitos da crise, atropela inclusive outros países do centro imperialista. Por exemplo, a guerra da Ucrânia, provocada pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), provocou uma grande crise na Europa, em função do fim do fornecimento de energia barata proveniente da Rússia, fundamental para o funcionamento da economia europeia.
A Alemanha, motor da economia do velho continente, entrou em recessão técnica no primeiro trimestre deste ano, depois da segunda queda seguida do Produto Interno Bruto (PIB), em um contexto de queda da demanda na indústria, inflação e taxas de juros elevadas. Segundo o instituto Destatis, medido em 12 meses o PIB alemão apresentou queda de 0,5% nos três primeiros meses do ano. A recessão da economia alemã está diretamente relacionada com o corte de fornecimento do gás russo, realizado após as monstruosas sanções dos países da OTAN à economia e à sociedade russas.
Os países ricos, que dispõem de projeto de política industrial, ao contrário da maioria dos países subdesenvolvidos, operam estratégias para aproveitar o melhor de todos os processos econômicos. Podemos observar esse fenômeno, neste momento, no caso do lítio, mineral que tem inúmeras aplicações na indústria, e que poderia ser uma imensa oportunidade para os países subdesenvolvidos se industrializarem, aproveitando a crescente demanda e as novas aplicações industriais do mineral. Porém, a tendência predominante é a dos países da América do Sul, onde estão as maiores reservas, continuarem a exportar o lítio na forma bruta, ou muito pouco beneficiado industrialmente, para o centro industrializado. É impossível, nas atuais condições, a América Latina competir com os generosos subsídios concedidos pelos EUA e Europa, visando atrair fábricas de baterias, de veículos elétricos e outras tecnologias da chamada transição verde.
Apesar do processo de desindustrialização que vive o Brasil desde meados da década de 1980, o país é ainda o mais industrializado da América Latina. Na história do país, são inúmeros os episódios que revelam as dificuldades das empresas brasileiras para se firmarem no mercado, especialmente quando seus produtos concorrem com os das empresas dos países ricos. Ou quando produzem componentes essenciais para reduzir ou eliminar a dependência tecnológica e industrial dos países ricos.
É estrategicamente desconhecido da esmagadora maioria dos brasileiros. o caso da empresa brasileira ENGESA (Engenheiros Especializados S/A), criada em 1958 por José Luiz Whitaker Ribeiro. Em 1958, a ENGESA (Engenheiros Especializados S/A) foi criada, produzindo inicialmente componentes para a exploração de petróleo, para a Petrobrás. No começo dos anos de 1970, estavam em desenvolvimento no Parque Regional de Moto-mecanização, da 2ª Região Militar, os blindados S/R Cascavel e Urutu. Convidada pelos militares para participar do empreendimento, em 1974, a empresa começou a vender para a Líbia o blindado Cascavel, equipado com canhão de 90 milímetros. A empresa vendeu esse equipamento para 18 países, do Oriente Médio, da África, da América do Sul e do Mediterrâneo.
Nos anos de 1980, a empresa desenvolveu um projeto de carro de combate, o Osório, armado de canhão de 120 milímetros. O projeto era brasileiro, mas absorvia os melhores componentes existentes no mercado mundial, visto que esse tipo de produto requer alta tecnologia, de forma a poder competir com os concorrentes mais modernos, que se localizam em alguns poucos países do mundo. Naquela época, quando a indústria tinha ainda um maior peso no PIB brasileiro, a taxa de importação era comum nos armamentos brasileiros, em função da alta tecnologia requerida. A ENGESA teve que fazer uma verdadeira peregrinação para localizar os detentores das melhores tecnologias, inclusive pelas retaliações sofridas. Por exemplo, a empresa G.L.S., subsidiária da Krauss-Maffei, convenceu outras empresas fornecedoras a não colaborar com o projeto do Osório.
Em 1985, a Arábia Saudita, interessada na compra, convocou a Alemanha, Brasil, EUA, França, Grã-Bretanha e Rússia a levarem seus carros de combate para demonstração in loco. A ENGESA participou com o carro Osório. Em 1987, a Arábia Saudita chamou para uma segunda avaliação, os carros de combate que tinham ido melhor na primeira: o Abrams norte-americano, o AMX 40 francês, o Challenger britânico e o Osório brasileiro. Tudo indica que a ENGESA venceu a disputa, tanto que assinou com o governo da Arábia Saudita um pré-contrato no valor de US$ 2,2 bilhões, para a fabricação de 316 carros de combate.
Nessa altura dos acontecimentos, entrou em campo a mão pesada da maior força da Terra, que impediu a continuação do negócio. O Departamento de Estado e o Departamento de Defesa norte-americanos movimentaram suas forças, levando o governo da Arábia Saudita a comprar o Abrams, apesar da preferência desse governo pelo Osório. Não se sabe que “argumentos” os norte-americanos utilizaram com os sauditas, mas o negócio com a ENGESA foi cancelado sem maiores explicações.
A empresa brasileira, que havia contraído empréstimos para direcionar seus esforços no sentido da construção do carro, pediu concordata em 1990. Depois de muitas tentativas frustradas de saneamento da empresa, em um período no qual o Brasil já tinha ingressado na onda neoliberal, decretou-se a falência da empresa em 1995. Todo o material do acervo tecnológico da ENGESA foi transferido para a fábrica de Piquete (em São Paulo), com exceção dos projetos do Osório, que, curiosamente, não foram encontrados em lugar nenhum. Em 2005 a fábrica de São José dos Campos foi vendida para a EMBRAER. Por falta de projeto nacional de desenvolvimento o Brasil perdeu uma companhia fundamental para o país obter autonomia em muitos itens de emprego militar, fundamentais inclusive para a própria soberania territorial do país. Até hoje não se sabe o destino do acervo tecnológico que estava na fábrica. Incluindo os projetos do carro de combate, Osório.
A indústria brasileira, ainda é a indústria mais diversificada da América Latina, apesar de todas as ações para destruí-la, principalmente nas últimas décadas. A Petrobrás é a expressão mais acabada desse fenômeno. Se o Brasil tivesse independência política dos países imperialistas, seria um dos mais industrializados do mundo. A industrialização do país, no período 1930/1980, com todas as suas limitações, é uma história muito relevante no processo de edificação da nação brasileira. O problema do desenvolvimento nacional do Brasil diz respeito, essencialmente, à correlação de forças políticas. Se o país dispusesse de uma política econômica soberana, com projeto nacional de desenvolvimento, teria aqui muitas empresas de primeira linha, com capacidade de disputar mercados mundiais (na lista das 500 maiores do mundo o Brasil entra com 6 ou 7 empresas, sendo que umas três destas são bancos).
O problema central para o país se desenvolver é romper com as amarras neocoloniais. A conjuntura internacional atravessa um momento histórico bastante peculiar, no qual um número grande de países subdesenvolvidos se rebela contra a ordem unipolar, que desmorona à olhos vistos. As condições de partida, para o Brasil enfrentar o problema chave do desenvolvimento, foram sintetizadas por um experiente diplomata brasileiro, há alguns anos:
O Brasil é um dos poucos países latino-americanos com características de território, de população, de recursos naturais, de nível de desenvolvimento, de industrialização e de tecnologia que teria condições de construir uma sociedade verdadeiramente democrática, desenvolvida, próspera e justa, com alto grau de autonomia. Que teria condições de participar em pé de igualdade com as chamadas grandes potências no cenário internacional, cada vez mais arbitrário, violento e concentrador (Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em entrevista concedida em 1995).
José Álvaro Cardoso é coordenador técnico do DIEESE/SC e colunista do Portal Desacato.
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