Por Cida de Oliveira.
A subnotificação dos casos de estupro de meninas que nem completaram 12 anos mascara a real dimensão da vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes no Brasil. No entanto, dados da Vigilância Contínua de Violência Doméstica, Sexual e outras Violências Interpessoais e Auto-provocadas e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Viva/Sinan), do Ministério da Saúde, fazem uma projeção no mínimo preocupante. No ano de 2015 foram registrados 162.575 casos de violência contra a mulher. Desse total, 17.871 (10,99%) são estupros, dos quais 6.706 (37,52%) em meninas de 0 a 12 anos. É como se 558 dessas crianças fossem estupradas todo mês, 18 por dia.
A análise comparada dos dados Sinan com o Sistema de Nascidos Vivos (Sinasc) de mães até 13 anos, no período de 2011 a 2015, mostra notificação de 32.809 estupros que culminaram em gravidez. Ou seja, uma estimativa de 15 meninas dessa mesma faixa etária sendo violentadas todos os dias. Em 45% dos casos, as ocorrências são repetidas, e são comuns os casos praticados dentro da própria casa.
As mesmas fontes do Ministério da Saúde mostram que, no período, das meninas de 10 a 14 anos que engravidaram e se tornaram mães, houve notificação de estupro em 3.266 casos.
Não bastasse a violência desse tipo de agressão, que causa danos físicos e psicológicos nas vítimas que em muitos casos mal chegaram à adolescência, o estupro de criança e adolescente interfere na gestação, traz complicações no parto e no nascimento. Uma interferência e tanto na saúde materno-infantil.
Desse total de gravidez precoce, 21,8% terminam em parto prematuro, em grande parte do tipo cesariana, com todos os riscos associados. Em 53,4% dos casos, o pré-natal começou tardiamente e, em 17,4%, os bebês nasceram com baixo peso. Clique aqui para acessar dados detalhados do Ministério da Saúde sobre o tema.
Desigualdade
O racismo e a desigualdade social resultante dos 300 anos de escravidão aparecem com vigor nos dados oficiais. O percentual de meninas até 13 anos que tiveram filhos foi maior entre negras (67,5%).
“Precisamos falar de saúde da população negra em uma perspectiva que vai além dos consultórios. Precisamos de ações sociais que dialoguem a favor da luta contra o racismo. É preciso pensar essas situações como problema de saúde pública”, diz a diretora de Políticas Sociais do Sindicato dos Psicólogos de Estado de São Paulo (Sinpsi), a psicóloga e militante do movimento negro Cinthia Cristina da Rosa Vilas Boas.
Com atuação em políticas do Sistema Único de Assistência Social (Suas), em Campinas, a psicóloga afirma que ainda prevalece a realidade descrita no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015, segundo a qual foram registrados o equivalente a um estupro a cada 11 minutos – 70% das vítimas são crianças e adolescentes.
“Quem mais comete o crime são homens próximos às vítimas, segundo dados do Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2011. Esses crimes continuam sendo praticados pelos homens. Porém, agora não são somente os próximos. Os casos de estupro acontecem em vários locais, dentro e fora das residências. Essas especificidades criam características que apontam para a luta em favor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, afirma Cinthia.
Segundo ela, nem todos os casos são notificados. E nem todas as delegacias da mulher funcionam. “E quando funcionam, são conduzidas por homens que reproduzem a mesma lógica machista, perversa e violenta com que acontecem os estupros”, afirma. “Acredito que as políticas sociais têm um importante papel nessas estatísticas, porém, o Estado não se responsabiliza em fazê-las acontecer; muitas vezes se isenta e não permite atuação do controle social e seu efetivo funcionamento”.
Educação
“Boa parte das violências sexuais ocorrem nos ambientes familiares e são praticadas nas residências das vítimas e por pessoas que deveriam protegê-las, como pais, padrastos, padrinhos, entre outros. Em razão da violência ocorrer em ambiente doméstico e da impunidade é que as situações se tornam repetitivas e reiteradas. Faltam delegacias especializadas de proteção de crianças e adolescentes, inclusive São Paulo é único estado que não tem nenhuma”, ressalta o advogado e coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe), Ariel de Castro Alves.
Segundo ele, são necessários centros de referência especializados em apoio às vítimas, com assistência social e psicológica. “É necessário também educação sexual nas escolas visando à prevenção, além de reforçar o programa saúde da família”, diz.
Há ainda a necessidade de centros médicos de referência para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, inclusive para os casos de aborto legal. Muitas vezes as meninas menores de 14 anos são casadas informalmente, ou namoram adultos e têm filhos.
“Isso demonstra a necessidade de educação, prevenção e atenção social. Não adianta tratar esses casos só no âmbito policial, criminal e judicial. Aqueles que se revoltaram com a liberdade artística nos museus, não se revoltam com esses números estarrecedores.”
Crime dos mais perversos
Estupro é o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (art. 213 da Lei nº 12.015/2009). É considerado um dos crimes mais perversos, já que interfere na saúde física, psíquica e, principalmente, sexual e reprodutiva das vítimas. A ocorrência de estupro na infância ou adolescência pode estar associada à maior vulnerabilidade, à depressão, ao suicídio, à gravidez, ao menor uso de métodos anticoncepcionais, maior risco de repetição da agressão e ocorrência de infecções sexualmente transmissíveis. “Logo, o estupro possui determinantes e consequências específicas que requerem a formulação de políticas, envolvendo as instituições de Segurança Pública, Saúde, Educação e Assistência Social”, diz a psicóloga Cinthia Cristina da Rosa Vilas Boas.
Fonte: Fórum