A BBC foi ao Piauí investigar por que Dilma foi tão votada lá

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“Esses aí tinham vida dura”, diz o agricultor Francisco dos Santos Nascimento ao apontar para quatro jumentos que repousam na sombra de um cumaru, uma das raras árvores frondosas do Semiárido.

Ali, no povoado Contente, sertão do Piauí, o equídeo costumava passar os dias com cangalhas no lombo carregadas de água ou lenha.

Então a luz elétrica chegou às 47 famílias do povoado. Depois, as cisternas, as motos e os ônibus escolares. A vida em Contente mudou, e os jumentos perderam funções. “Hoje, até eles estão mais gordos”.

Não por acaso, foi no Piauí que Dilma Rousseff obteve seu melhor resultado proporcional no primeiro turno: 70,6% dos votos, ante 14% de Marina Silva e 13,8% de Aécio Neves.

No Semiárido, que se estende por nove Estados e onde cerca de 40% da população ainda vive no campo, sua vantagem foi ainda mais folgada. No município de Paulistana, que abriga o povoado Contente, Dilma foi escolhida por 80% dos 11,5 mil eleitores, seguida por Marina, com 13%, e Aécio, com 5%.

“Se falar mal de Dilma aqui, periga apanhar”, brinca a mulher de Francisco, Erismar Celestina dos Santos, de 34 anos.

E se Aécio vencer a eleição? “Não quero nem pensar, me dói o estômago.”

Em três dias de viagem pelos “interiores”, os povoados rurais da região, a BBC Brasil não topou com qualquer sinal da campanha de Aécio e encontrou um único pôster de Marina.

Já adesivos de apoio a Dilma e ao também petista Wellington Dias, reeleito ao governo piauiense no primeiro turno, eram avistados a cada instante nas portas das casas.

Dilma deve grande parte de sua força ali ao laço com Luiz Inácio Lula da Silva, cujo governo é tido como um marco na história da região. Nos povoados, cada um tem na ponta da língua os programas federais lançados pelo ex-presidente.

Maior marca de sua gestão, o Bolsa Família costuma ser o primeiro da lista. “É uma ajuda sagrada”, define Erismar, mãe de um filho e que recebe R$ 184 ao mês pelo programa.

A iniciativa, no entanto, é considerada apenas um ponto de partida para várias outras melhorias ocorridas nos anos seguintes.

As mudanças, conta a líder comunitária Jucélia Xavier, se intensificaram a partir de 2007, quando o governo federal reconheceu Contente e várias comunidades vizinhas como áreas remanescentes de quilombos.

Há muito, os mais velhos contavam histórias de antepassados vindos da África, e a comunidade ainda guarda os utensílios que embasaram o reconhecimento: objetos pontiagudos usados para mutilar escravos e fechaduras que, segundo se conta, pertenciam a uma senzala.

Segundo o Ministério da Cultura, há hoje 2,5 mil comunidades quilombolas no país, onde moram 130 mil famílias.

Como comunidades tradicionais e beneficiários do Bolsa Família passaram, nos anos Lula, a ter prioridade na aplicação de várias políticas públicas, logo os programas começaram a chegar.

Em pouco tempo, o Luz para Todos ligaria o povoado à rede elétrica. Hoje quase todas as casas de Contente têm TV, geladeira e máquina de lavar.

Cada residência também ganhou uma cisterna. Com o equipamento, que armazena a água das chuvas, as famílias garantem seu abastecimento até a estação chuvosa seguinte.

Nas secas mais severas, os reservatórios são reabastecidos pelo Exército, sem a intermediação de políticos locais. A prática golpeou a chamada indústria da seca, pela qual autoridades trocavam favores por votos.

Antes das cisternas, lembra Jucélia, todas as madrugadas as mulheres deixavam suas casas em carroças para buscar água com cabaças. “Tinha de cavar na cacimba com picareta e levar na cabeça”.

Com Lula, contam os moradores, também surgiram os primeiros programas de proteção a agricultores. O mais citado é o Seguro Safra, que em anos de colheita fraca, como este, efetua cinco pagamentos mensais às famílias. Em 2014, eles dizem que as parcelas foram de R$ 170.

Segundo os moradores, Dilma não só manteve os programas de Lula como lançou outras três iniciativas que beneficiaram a comunidade.

Pelo Brasil Sem Miséria, extensão do Bolsa Família, cada família recebeu neste ano a fundo perdido R$ 2.400 para investir em atividades rurais. A maioria das famílias optou por construir nos fundos das casas abrigos para rebanhos ou ampliar suas criações de porcos, ovelhas ou galinhas.

E, para garantir a oferta permanente de água para os animais e pequenas lavouras, estão sendo construídas na comunidade 16 cisternas-calçadões. Nesse sistema, grandes placas de cimento canalizam a água para os reservatórios, capazes de armazenar 52 mil litros, três vezes mais que as cisternas comuns.

Segundo Jucélia, antes dessas ações, o agricultor “ia trabalhar nas roças dos outros para conseguir R$ 15 por dia para comprar o leite pro filho”.

“Era o tempo da proteção de Deus e do braço pra cuidar da gente”, lembra Maria de Jesus Nascimento, 76 anos e mãe de 11 filhos. “Era uma escravidão.”

Agora, como os repasses do governo garantem as compras básicas do mês, os agricultores passaram a investir seu tempo nas roças próprias.

Também foi no governo Dilma que as crianças do povoado passaram a ser buscadas na porta de casa por ônibus escolares amarelos, como os usados nos Estados Unidos.

O vaivém dos veículos, entregues às prefeituras pelo programa federal Caminho da Escola, chega a causar pequenos congestionamentos nas cidades da região.

Apesar dos avanços, moradores dizem que uma das principais vitrines eleitorais de Dilma, o Mais Médicos, não teve qualquer impacto ali. Alguns ouviram falar da chegada de médicos cubanos a municípios próximos, mas não notaram melhorias. Eles dizem que há imensa dificuldade para agendar consultas e exames.

A crítica ao sistema de saúde é o único ponto a unir eleitores de Dilma e os raros apoiadores de Aécio na região, em geral jovens assalariados das áreas urbanas.

Moradora de Paulistana, a garçonete Valdene de Souza, 27 anos, afirma que uma falha médica ameaça deixar sua filha de três anos com sequelas para o resto da vida.

Há três meses, ela levou a menina ao hospital para examinar uma fratura no braço. O médico, diz Valdene, avaliou que não era necessário engessá-lo. Passado um mês, porém, o cotovelo da menina entornou.

Ao levá-la ao hospital regional de Picos, a 120 quilômetros dali, Valdene ouviu que a menina deveria ter sido operada e que o dano talvez não pudesse mais ser revertido.

Ela diz que, em vez de financiar obras de calçamento e a construção de quadras esportivas na cidade, o governo federal deveria ter priorizado os gastos com saúde. “Prefiro andar em buraco a ver minha filha com braço torto pro resto da vida”.

Valdene afirma que votará em Aécio em protesto contra o sistema médico e contra o Bolsa Família, que considera injusto.

Ela diz que, entre os moradores de Paulistana, há “pessoas muito bem de vida” na lista de beneficiários do programa. “Tenho que trabalhar para sobreviver e não quero que no fim do mês 30% do meu salário seja descontado (em impostos) para sustentar os outros”.

Já o governo afirma que fraudes no programa são raríssimas.

Em Contente, a agricultora Maria Aparecida Nascimento Nunes, 40 anos, foi na última quarta-feira ao posto de saúde mais próximo para tratar uma dor na coluna e uma inflamação nos olhos.

Ela esperou pelo único dia da semana em que há atendimento médico no posto – nos outros dias, só há enfermeiros. Mas o médico faltara, e ela perdeu viagem.
“A saúde aqui é péssima”, ela desafaba.

A avaliação, porém, não borra a admiração que Aparecida nutre por Lula e Dilma por causa das ações de seus governos. “Quando eu vejo ela na televisão, eu só me contento quando digo ‘benção, mamãe Dilma’.”

Além de melhorar a vida dos moradores, ela diz que os programas das gestões petistas conscientizaram os moradores do sertão sobre seus direitos. “A gente estava tudo dormindo com o olho aberto. Hoje temos respeito.”

Fonte: BBC

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