Fundamentalistas querem matar o aborto legal. Governo diz: “fiquem à vontade”

aborto.legalPor Lola Aronovich.

É assim: a gente vive num país tão restritivo em matéria de aborto que tem que comemorar cada coisinha, por mais insignificante que pareça.

Em 2012, quando o Supremo aprovou lei que possibilita aborto em caso de fetos anencéfalos, a gente teve que comemorar. Confesso que fiquei surpresa: eu nem sabia que uma mulher era obrigada a carregar em seu ventre durante nove meses um feto que não desenvolve o cérebro e, assim, ora nasce morto, ora morre poucas horas depois. É uma violência enorme submeter uma mulher a ter que parir um filho morto. Ainda mais porque é comum que todos no hospital corram ao quarto para ver aquela “aberração”.

Em março do ano passado, comemoramos um fato inédito: o Conselho Federal de Medicina e 27 conselhos regionais, que representam 400 mil médicos em todo o país, se posicionaram a favor do aborto até a décima-segunda semana de gravidez. Dois terços dos médicos disseram defender “o caminho da autonomia da mulher”.

Diante da decisão dos médicos, o então ministro da saúde tratou de tranquilizar os fundamentalistas: “O governo federal, desde o começo, disse que não tomaria nenhuma medida no sentido de mudar a lei atual do aborto no Brasil”. É triste: o PT apoia a legalização do aborto, está no seu estatuto, mas governa o país de acordo com o que seus aliados — partidos nanicos que desafiam o Estado laico — mandam.

Em agosto, comemoramos Dilma enfim ter peitado os fundamentalistas, sancionado um projeto aprovado no Senado, que meramente regulamentava atendimento na rede pública às vítimas de violência sexual. Os fundamentalistas, pra variar, queriam que Dilma vetasse tudo, inclusive a pílula do dia seguinte. Viram a sanção presidencial como a legalização do aborto no Brasil.

Semana passada, comemoramos a portaria 415, que garantia verba para a realização de aborto no SUS nos casos previstos por lei, que são somente três — gravidez em decorrência de estupro, risco de vida para a gestante, e fetos anencéfalos. A portaria mudava o nome de “curetagem” (algo que é realizado em outros procedimentos além do aborto) para “interrupção da gestação ou antecipação do parto”. Esta mudança de nomenclatura, na prática, apenas possibilitaria obter estatísticas mais precisas.

E a portaria fixava o preço de R$ 443,30 por cirurgia para os hospitais. Antes, era R$ 170, o que não cobria os custos, e (também) por isso vários se recusavam a realizar o aborto. Lembrando mais uma vez, pra quem ainda não entendeu: estamos falando de aborto nos casos previstos por lei! A portaria não “legalizava o aborto”, ao contrário do que os fundamentalistas gritaram (de novo!). Apenas tentava garantir que a lei fosse cumprida e que, por exemplo, mulheres que engravidassem de um estupro pudessem abortar.

Porque, não sei se você sabe, mas realizar um aborto legal no Brasil é uma missão quase impossível. Primeiro que há apenas 65 hospitais — num país de proporções continentais — que oferecem este serviço. Segundo que boa sorte descobrir quais são esses hospitais, porque seus nomes são guardados a sete chaves, segundo o Ministério da Saúde, para proteger a equipe médica e as mulheres que recorrem a um aborto legal. Pô, legal o Ministério pensar na segurança das mulheres, né? E essas mulheres vão descobrir como onde devem ir? Porque esses hospitais não aparecem listados em nenhum lugar!

Terceiro que, mesmo que uma mulher tire a sorte grande e descubra um desses 65 hospitais, ela pode chegar lá e dar de cara com um médico que alegue “objeção de consciência”. E tudo bem, ele pode se recusar a realizar o aborto, mas o hospital em si não pode. O hospital deveria oferecer um outro médico que fizesse o que a lei permite. Ou melhor, garante.

Uma leitora, mãe de três filhos, relatou a peregrinação que fez no ano passado para ter direito ao aborto, pois corria risco de vida: “Fui ao Hospital da Mulher no RJ, munida com tudo e certa que iriam me ajudar! Mas não. Fui muito repreendida, disseram que aborto é crime e para eu desistir que lá jamais iria conseguir”. Ela passou por vários outros hospitais, até recorrer a um aborto clandestino. Porque era isso: pagar ou morrer. Esta leitora, aliás, só tentou correr atrás de seus direitos porque leu o meu post sobre aborto legal. E acreditou que no Brasil existia aborto legal.

A Agência Pública fez uma completa e excelente reportagem sobre os inúmeros entraves do aborto legal no país. Um dos casos chocantes narrados é o de uma moça que foi estuprada em 2011 perto de sua antiga casa, em Recife. Envergonhada, sentindo-se culpada, como a maioria, não deu queixa. Duas semanas depois do estupro, fez um teste de farmácia e descobriu-se grávida, e procurou a Delegacia da Mulher. Lá o policial lhe deu um sermão: “Você deveria pensar duas vezes antes de vir aqui buscar um BO para tirar um filho. Ninguém vai registar nada ali se sua intenção é matar uma vida”.

Detalhe: pela lei, não é preciso apresentar BO nem “comprovar” o estupro para realizar o aborto. Quer dizer, pelo menos na teoria. Na prática, como eu já falei, a mulher vai penar até para encontrar um hospital.

Felizmente, a mulher deste caso morava na Alemanha. Voltou pra lá e realizou o aborto na rede pública. Porque seu país natal, o país onde foi estuprada e engravidou, não lhe concedia o direito a abortar. Mesmo que esse direito estivesse na lei desde 1940.

O caso desta moça não é exceção. Segundo a Pública, cerca de 7% dos casos de estupro resultam em gravidez. Ainda que a legislação garanta a possibilidade de aborto, quase 70% dessas mulheres brasileiras que engravidaram de um estupro não puderam abortar. Então que lei que não é cumprida é essa?

E as mulheres que correm risco de vida e não podem abortar, fazem o quê? Morrem? Tentam aborto por conta própria com misoprospol (em doses repetidas a cada 12 h em um ciclo de 48 h com três a cinco dias de intervalo, segundo orientação da Norma Técnica, e atenção, não é por via oral, é vaginal)?

Mas onde elas vão conseguir o Cytotec, proibido no Brasil? Terão que confiar em contrabandistas. Uma situação surreal que expõe mulheres a uma situação de extrema vulnerabilidade, como mostra o filme romeno 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias.

Que fundamentalistas não têm a menor compaixão por mulheres, a gente sabe. Mas nem de crianças eles têm dó? Afinal, os obstáculos que proíbem mulheres adultas de abortarem legalmente são os mesmos que obrigam meninas a parir. A Pública calcula que 10% dos casos de estupro com penetração em garotas de até doze anos resultam em gestação.

E aí, você acha que uma menina de dez anos que foi estuprada deve ser forçada a ter um filho, mesmo sem ter a menor formação física e/ou psicológica para isso?

Mesmo que ter o bebê a coloque em risco de vida? Mesmo que esse risco resulte na morte de duas crianças (ela, a mãe, e o bebê)? Bom, os dados apontam que 80% das meninas que engravidaram não fizeram aborto legal. Menos de 6% dessas meninas com menos de 12 anos que foram estupradas e engravidaram conseguiram abortar. Esses números não te fazem gritar de raiva não? Você realmente acha que uma menina deve ser forçada a ser mãe? Isso não te soa quase como uma segunda violência?

Lembra quando, em 2009, uma menina de nove anos e 1,30 m de altura ficou grávida de gêmeos após ter sido estuprada pelo padrasto? Saiu em toda a grande mídia na época. Os laudos atestavam que a menina não seria capaz de resistir à gravidez e muito menos a um parto de gêmeos. Ela morreria, e os bebês também. Mas, apesar da sua necessidade de aborto estar totalmente dentro da lei (ela fora estuprada e corria risco de vida), foi complicadíssimo fazer a operação.

O arcebispo de Olinda e Recife fez um escândalo e tentou impedir o aborto a qualquer custo. Excomungou os médicos, as feministas que estavam dando apoio à menina, a mãe da menina, que só queria a filha viva. Só não excomungou a menina porque ela era menor de idade. Ah, sabe quem mais não foi excomungado? O padrasto estuprador. O arcebispo deixou claro, com todas as letras, que a igreja católica via — vê — o aborto como algo muito mais grave que um mero estupro. Afinal, estupros geram vidas, aleluia!

Finalmente a menina conseguiu abortar, e sobreviveu. Na ocasião, quase todo mundo ficou a favor do direito da menina de realizar um aborto, e contra o arcebispo. E então, o que mudou de 2009 pra cá? Retrocedemos? Ficamos ainda mais conservadores? Hoje haveria uma multidão de fundamentalistas apoiando o arcebispo e fazendo de tudo (e esse “tudo” inclui atos terroristas a clínicas, nos EUA — pois é, “pró-vidas” matam médicos e mulheres) para que a menina não abortasse?

Anteontem, dia 29, o Ministério da Saúde revogou a portaria 415. Mais uma vez, o governo cedeu às pressões fundamentalistas. É vergonhoso, é de fazer corar. Que falta de coragem de um governo que não é capaz nem de cumprir leis que garantam o aborto legal! Por que um governo que deveria ser de esquerda obedece cegamente a um pessoal que gostaria de substituir a Constituição pela Bíblia?

Ah, é pela “governabilidade”? Mas que governabilidade é essa que permite que o fundamentalismo religioso dê todas as cartas? Ah, é pra ganhar eleição e continuar no poder? Mas pra que ficar no poder, se é pra deixar que mulheres e meninas morram por não poderem realizar seu direito mais básico, que é o direito ao próprio corpo?

Nosso país está tão na vanguarda do atraso em relação ao aborto que precisamos lutar não para legalizar o aborto, mas para manter o aborto legal em três míseros casos (risco de vida, estupro, anencefalia fetal). Porque até esse direito previsto por lei os fundamentalistas querem tirar das mulheres. E contando com um governo como cúmplice.

Fonte: Escreva Lola Escreva.

1 COMENTÁRIO

  1. Eu desejo que na próxima encarnação esse arcebispo nasça mulher, seja estuprada e engravide, e seja impedido de interromper a gestção, sera que ele aguentaria????

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