Por Leonardo Soares, para Desacato.info.
Após o impacto da obra do economista Thomas Piketty (O Capital no século XXI) e da colossal repercussão em praticamente todo o planeta, os seguidores da seita liberal não tem poupado ataques, golpes mais do que baixos, acusações de que ele é um “marxista” e comentários que só expressam a profunda e incontornável desonestidade intelectual que marca a visão de mundo desses fanáticos fundamentalistas do “pensamento” econômico.
É visível o desequilíbrio dessa gente, parecem estar tontos com tanta comprovação estatística do óbvio, que o capitalismo não passa de um verdadeiro câncer em forma de sistema econômico.
Mas o que mais impressiona num texto como o de Paulo Guedes não é apenas a total e inegável indigência teórica, conceitual e empírica – como de costume, os liberais são incapazes de contestar seus interlocutores com um mínimo de argumentos factíveis e cientificamente comprováveis -, mas também o lastimável deboche, pouco caso e covardia com o argumento histórico.
Em seu “Beco sem saída”, as estripulias contra a verdade já dão o tom nas primeiras linhas de seu canhestro e abominável artigo:
O mito do capitalismo cruel foi sempre muito popular. Afinal, sendo o capital tão velho quanto o diabo, são-lhe atribuídos todos os males do mundo. Floresceu entre os negociantes assírios, nos mercados da Babilônia, com navegantes fenícios, comerciantes atenienses, latifundiários e feirantes medievais, industriais e financistas anglo-saxões e agora até mesmo entre ex-comunistas sino-soviéticos.
Se realmente levarmos a sério alguma coisa desse trecho, logo, podemos concluir que as raízes da crítica ao capitalismo não estão em Morus, em Rousseau ou nos socialistas franceses, mas sim nos reis de Sodoma e Gomorra, nos povos sassânidas e num suposto manifesto comunista da lavra de Nabucodonossor.
E prossegue o historiador em sua insidiosa cruzada. Depois de chamar Marx de um economista “menor do século XIX” – tudo porque o sujeito cometeu o disparate de criticar o capitalismo como um sistema marcado pela desigualdade, imagina…. – o imparcial e equilibrado neoliberal exala todo o seu fanatismo religioso contra o socialismo:
Pouco importa que um apocalipse do regime socialista tenha mergulhado na miséria 3,5 bilhões de eurasianos, que buscam agora, em desespero, sua inclusão nos mercados globais, derrubando salários e aumentando os lucros em todo o mundo. A culpa é sempre do capitalismo.
Não satisfeito em surrar a verdade histórica, Guedes parte com uma fúria hedionda contra a lógica. Vejam: o socialismo ? derrubado, é substituído pelo capitalismo neoliberal, lança uma enorme massa humana na mais pura e abjeta miséria, mas a culpa é toda dos socialistas. Mas não é genial o gigante do surrealismo?
Além disso, ele tenta nos fazer crer que o capitalismo paga baixos salários por conta de uma trama diabólica do socialismo, para este ao final, com o dedo em riste, acusar de uma maneira bem deselegante: ” – Tá vendo como o capitalismo é mauzinho??”
Só isso seria suficiente para Guedes parar. Mas não. O bom senso parece não fazer parte do seu dicionário. Ele prossegue em seu empreendimento aterrador. Não sobra pedra sobre pedra. Pior para nossos neurônios:
A culpa pela concentração de riqueza é do capitalismo, que permitiu a acumulação desigual nos tempos em que houve abusos e excessos, ou dos governos, que impediram grandes perdas patrimoniais nas crises decorrentes? Por que não aliviaram hipotecas de classes de baixa renda e dívidas de estudantes, em vez de garantirem grandes fortunas estacionadas em um sistema financeiro quebrado?.
Aqui, Guedes chega ao cúmulo de tratar capitalismo e “governos” como duas entidades distintas e irreconciliáveis. No cúmulo que se tornou a sua análise ele não percebe que em qualquer mente minimamente higienizada, os governos estão imersos, atravessados, contaminados e formatados pelo sistema econômico que constitui o contexto de sua existência material.
A hipótese (vou fazer isso para tentar salvar um pouco a pele do Paulo) do autor é tão esdrúxula e baldia que permitiria pensar que todas as medidas tomadas em prol do capital financeiro durante a crise de 2008 foram na verdade um ardil típico de um Estado liderado por alucinados bolcheviques em conluio com aldeões de sociedades comunais do interior da Mongólia e trotskistas de cavernas do norte da Turquia.
Ou poderíamos imaginar – partindo da ginástica retórica de Guedes e tomando litros de chá de LSD – que os governos agiram para salvar o capitalismo, mas que eles não eram e nunca foram capitalistas. Pois eles na verdade odeiam o capitalismo. (Afinal, é possível que algum psiquiatra possa nos ajudar a compreender tal mentalidade? Pois tá difícil. Ou quem sabe já baste um desentupidor de vaso sanitário…).
Sem mais ter o que inventar – para tentar agredir a lógica, Guedes parte com certa truculência para frases sem sentido:
Isso pode ser coisa do diabo, de financistas e do governo, mas não é coisa do capitalismo, que também destrói privilégios e riquezas todo tempo e em toda parte.
Ora, se o capitalismo é tão bondoso, fofo e cheiroso, por que não cuidou ele mesmo de aliviar as “classes de baixa renda” e os “estudantes”? E por que ao invés de destruir “privilégios e riquezas todo tempo e em toda parte” (juro que esses trechos parecem novenas daqueles alucinados líderes messiânicos…), o capitalismo só cuide de destruir salários, direitos e conquistas dos trabalhadores; de arrazar com aposentadorias, políticas sociais e programas de redistribuição de renda?
E depois de todo esse incrível espetáculo de profunda antipatia pelo debate racional, o economista do credo neoliberal não poderia terminar senão da pior maneira possível:
Poderíamos evitar males como a concentração excessiva de renda e riqueza? Poderíamos reduzir os riscos de uma desestabilização política das democracias liberais? É claro que sim, e de várias maneiras. O único caminho inexorável para o abismo, o verdadeiro beco sem saída lamentavelmente escolhido pelos nossos vizinhos kirchneristas e bolivarianos, é o “socialismo do século XXI”.
Após responder a sua própria pergunta com um pouco convincente “É claro que sim, e de várias maneiras”, o que podemos esperar de um sujeito minimamente comprometido com a correção e a integridade intelectuais? Mesmo em se tratando de um neoliberal, espera-se que ele aponte ao menos uma “maneira” – umazinha que seja. Uma maneira de remediar a avalanche de destruição, caos e opressâo patrocinados pelo regime do capital. Mas não! A falta do menor senso crítico o exime de qualquer compromisso com a seriedade. O sujeito arrota dogmas, chavões e slogans e ainda espera que o chamemos estrela-maior da ideologia do liberalismo-neopetencostal.
E mais lamentável ainda é se servir de espantalhos como o kirchnerismo e o bolivarianismo para tentar “demonstrar” como o capitalismo é justo e decente. Quem com um mínimo de miolo sadio pode acreditar que Argentina e Venezuela são repúblicas socialistas? E quem garante que o suposto abismo no qual se encontram tais países não seja legado ainda do cruel ajuste neoliberal que neles vigoraram até a década de 90?
Triste. É triste ver como os pensadores neoliberais não consigam sair do beco em que se meteram: após o seu projeto econômico só ter causado calamidade, destruição, desigualdade e miséria, eles agora investem de maneira psicótica contra o próprio debate intelectual. Dentro de sua lógica totalitária, qualquer coisa que contrarie os postulados do livre mercado é esconjurada com um fervor ideológico de fazer inveja aos talibãs. Nada que conteste o esmagamento da substância humana em prol do capital é aceitável. Eles apelam a tudo – sobra até para a fé.
Leonardo Soares é historiador e professor da UFF.