Operário torturado depõe e acusa ex-deputado de entregá-lo aos militares

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    Por Vítor Santos

    Daniel Souza Rachadel, 64 anos, preso no âmbito da Operação Barriga Verde, em 8 setembro de 1975, em Criciúma, quando reivindicava aumento salarial para os mineiros, depôs na tarde desta segunda-feira (19) na Comissão Estadual da Verdade, na Assembleia Legislativa, e revelou que seu nome e de cerca de outros 20 operários presos na ocasião foram repassados aos militares pelo então deputado estadual Sebastião Neto Campos (Arena), que administrava as minas de propriedade da família Catão. “Fomos levados para um galpão próximo do campo do Comerciário, colocados de bruços no chão, com as mãos amarradas para trás, mas lembro-me de uma voz que perguntava a identidade de um visitante, ‘quem é, o que ele queria?’. Outra voz respondeu, ‘é o Sebastião Neto Campos, queria saber se toda a lista dele tinha vindo para cá’”, relatou Rachadel, chorando copiosamente.

    De acordo com o ex-preso, sua atuação consistiu em ir de mina em mina convencer os mineiros a parar. “Me disseram, ‘tu vai nas minas, CBCA, São Simão’”, explicou, acrescentando ser visível que os “patrões” sabiam da tentativa de interromper a produção. “Muitos companheiros fugiam de mim, outros me ouviam, mas queriam saber quantas armas possuíamos”, contou Rachadel, que ainda acusou outro empresário do carvão. “Eu era só um operário, tinha 25 anos, era um guri, achava que se fizesse uma greve ganharia um salário melhor, mas o Diomício Freitas mandou um tal de Nenêm Cassão me matar”, denunciou Rachadel.

    Conforme descreveu o operário à Comissão da Verdade, ele e os mineiros, bem como outros presos políticos da região carbonífera, foram transferidos para o presídio estadual de Florianópolis, onde permaneceram por 12 dias. “Não fomos torturados em Santa Catarina”, afirmou. Depois Rachadel foi conduzido para Curitiba e lá barbaramente torturado até o fim de novembro, quando cessaram as torturas, segundo crê o ex-preso, por causa da repercussão da morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 25 de outubro de 1975 nos porões do DOI-CODI.

    Todavia, Rachadel permaneceu preso até abril de 1976 e contou que a partir de janeiro desse ano os prisioneiros políticos começaram a receber atendimento psicológico na enfermaria da prisão, em Curitiba. “Eles nos diziam ‘vocês resistiram, levaram pau e não morreram nem se enforcaram como o Herzog’”, contou, completando que o “tratamento” indicava “que os militares sabiam que a tortura era algo perigoso para eles”.

    Questionado sobre a identidade dos torturadores, Rachadel respondeu que lembrava de dois, um apelidado pelos presos de “sargento do diabo” e outro de “tenente beleza”, por causa das costeletas e do corte impecável do cabelo. “É muito difícil passar pela tortura e guardar alguma lembrança, lembro que alguns riam e cantavam, ouviam música clássica e tinha um que cantava ‘meu carrão 73’”, explicou Rachadel, aludindo à canção “Ouro de tolo”, de Raul Seixas.

    Depois da prisão

    Ao sair da prisão Rachadel veio para Criciúma. “Quando voltei me escondi dentro de casa, passei seis meses trancado. Meus irmãos é que me tiraram de casa, achavam que era um vadio, que tinha de trabalhar”, declarou. Atualmente mora em Biguaçu, é casado, tem dois filhos e é avô pela terceira vez. “Não contei nada para eles”, revelou, justificando que não retornou da prisão como herói. “Quando voltei, passei por bandido”, contou Rachadel, declarando ainda que apenas o empresário de minas, João Zanetti, “fichava ex-presos políticos”, isto é contratava os que haviam sido presos pela ditadura civil-militar de 1964.

    Um preso desconhecido

    Conforme apurou a Agência AL, Rachadel é completamente desconhecido daqueles que se dedicam a revolver “os anos de chumbo”. Foi descoberto porque postou uma crítica no Facebook da Comissão Estadual da Verdade, argumentando que esta somente convocava “doutores”, esquecendo dos “operários”. Ele não respondeu processo, não procurou registros de sua prisão em Florianópolis e Curitiba e nem requereu a indenização estadual e federal instituídas para reparar os danos físicos e morais causados pelo estado brasileiro. Para Derlei Catarina de Luca, do comitê “Verdade, Memória, Justiça”, ainda há vários catarinenses cujas histórias nos porões da ditadura permanecem ocultas.

    Derlei creditou parte do desconhecimento ao fato dele não ter pertencido a nenhuma organização clandestina, nem ter sido filiado a partido político. “Pode ser que na prisão tenha sido confundido pelos outros presos políticos como um espião dos militares”, argumentou Derlei, que também provou a experiência da tortura e os métodos de contrainformação utilizados pelos brasileiros fardados.

    Além disso, os membros da Comissão Estadual da Verdade, a partir de dados revelados pelo ex-preso, como apelidos de colegas de mina e de nomes de outros ex-presos políticos que com ele dividiram cela, vão buscar nos arquivos da repressão indícios da prisão do mineiro barriga verde que contestou os patrões da época e quase pagou com a vida a ousadia.

    Momento de pânico

    Desde o primeiro contato com os membros da Comissão da Verdade, Rachadel demonstrou forte emoção, chorando várias vezes. Todavia, o momento de maior tensão emocional ocorreu quando o o ex-preso descrevia sua experiência e o fotógrafo da Casa, Carlos Kilian, disparou sua câmera, produzindo um “tá-tá-tá” intermitente. Após a audiência, Rachadel procurou Kilian e pediu-lhe desculpas. Justificou seu pânico revelando que o barulho da câmera soou igual à manivela da máquina de choque do Exército verde oliva.

    A cadeira do dragão

    Daniel Rachadel repassou à Comissão da Verdade um relato escrito sobre as torturas que sofreu. Abaixo, a Agência AL transcreve a passagem do “baixinho”, como Rachadel era chamado pelos outros presos, na cadeira do dragão.

    “Durante a prisão houve muitos momentos de dor e terror, não só para mim, mas para todos os presos políticos. Constantemente buscavam prisioneiros, eles eram levados de suas celas e não retornavam, diziam que eram postos em valas ou despejados em alto mar (…). A maior angústia não era saber o momento da vinda dos agentes, mas de não se saber qual de nós seria tirado das celas e levado para não mais voltar.

    A segunda vez que fui levado à sala de tortura já não me reconhecia mais, não existia mais nada daquele jovem cheio de sonho, parecia mais um animal enjaulado do que um jovem que tinha muitos ideais. Fiquei muito revoltado com tudo, não sentia aquele amor que me fora ensinado e não conseguia mais ver o mundo à minha volta como um lugar de amor.

    Quando chegamos à sala da tortura era mais ou menos 15 horas, já havia gente sendo tirado daquele lugar com a cabeça, as pernas e os troncos esfolados, o sangue escorrendo, arrastados pelos corredores e levados diretamente para um banho de mangueira com água fria, pois saíam da tortura em estado lastimável, envoltos em sangue, vômito e fezes. Só quem esteve naquele lugar pode compreender e relatar, apesar da mente querer esquecer.

    Havia dois tipos de tortura, a primeira era ficar esperando na sala a vez de ser interrogado. Enquanto isto, se ouvia os gritos de dor do torturado. Não eram gritos de dor somente, eram gritos de alguém que fazia muita força para livrar o seu corpo de algo. Chegada minha vez de ir ao interrogatório tive o desprazer e o horror de sentir no meu corpo o que era a cadeira do dragão. Era de madeira, pesada, com suporte para apoiar os braços e sobre o acento uma chapa de ferro onde eram presos os fios que estavam conectados a uma caixa que tinha uma lâmpada vermelha que chamávamos de ‘pimentinha’. A caixa tinha uma manivela onde um agente do DOPS a girava. O choque elétrico dependia do movimento giratório da manivela, se aumentavam a velocidade o choque era mais intenso, se diminuíam, amenizava.

    Ao adentrar naquela sala, o ‘sargento do diabo’, este era o nome que dávamos ao tal sargento, ordenava que tirássemos a roupa e ficávamos completamente nus. Em seguida nos ordenava sentar na cadeira e se não fizéssemos imediatamente imobilizavam-nos e sentavam-nos à força. Nosso corpo não tinha mais energia, estávamos debilitados, não tínhamos como reagir. Então éramos amarrados com correias de couro nos braços e nas pernas e a cabeça era amarrada em uma espécie de cabresto. Depois do corpo imobilizado, pegavam um balde de água e nos molhavam como estratégia para aumentar a dor do choque.

    Daí começavam o interrogatório, a cada pergunta não respondida satisfatoriamente o agente girava a manivela. O choque era tão intenso que fazia com que nos torcêssemos na cadeira, comprimindo o corpo contra a correias amarrados nos braços e pernas e o cabresto da cabeça. A força que fazíamos para se libertar era tão grande que as correias cortavam as partes do corpo, fazendo-o sangrar.

    A dor mais horrenda e insuportável era o choque na parte anal e principalmente nos órgãos genitais que estavam sobre a chapa de ferro. Havia cheiro de queimado nestas partes do corpo. Entrávamos em estado de pavor e já não era mais possível entender as perguntas feitas pelos agentes. No momento do choque o corpo tentava sair da chapa molhada e o choque fazia com que nos mexêssemos, rasgando assim a pele que ficava presa nas correias, esfolando braços pernas e fronte. Já não se pode dizer que ali havia seres humanos, não me sentia mais um ser humano, os gemidos de dor eram acompanhado de esforços para escapar daquela chapa molhada. Não havia mais coordenação do cérebro, a dor e a humilhação não nos dava o direito de nos imaginar seres humanos. O som da música alto abafava nosso direito de pensar como seres humanos. Além do alto volume do som, muitos torturadores cantavam trechos de músicas enquanto torturavam. Na verdade nunca se imaginará o que é um ser humano em tempo de guerra, pois não há nele sentimento de piedade ou de amor.

    Depois da tortura levavam-nos para um banho de mangueira com água fria e então voltávamos às celas. No começo os companheiros corriam nos atender, mas traziam um olhar carregado de piedade e isto era o que muito me irritava, pois a tortura já era o bastante para me sentir um trapo humano e o fato de ser olhado com piedade só me colocava mais para baixo ainda. Geralmente depois das torturas vomitávamos dois ou três dias, nada ficava no estômago. Com os choques era pior ainda, pois tínhamos um gosto de podre na boca que perdurava quase uma semana e só ia amenizando aos poucos.”

    Fonte: Agência Alesc

    Foto: Carlos Kilian/Agência AL

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