Por Marcelo Justo. A passagem dos 50 anos do golpe militar contra João Goulart, no último dia 31 de março, representou um claro sinal de tudo o que falta no caminho dos direitos humanos e da verdade no Brasil. Esse caminho tem sido sinuoso na América Latina. O julgamento das Juntas Militares na Argentina, nos anos 80, a aplicação da jurisdição universal por violações de direitos humanos impulsionada pelo juiz Baltazar Garzón e a detenção de Augusto Pinochet, nos anos 90, a revogação das leis de impunidade pelo kirchnerismo e os julgamentos no Chile foram avanços que só não foram maiores pelas idas e vindas do Uruguai e pela manutenção da lei da autoanistia no Brasil.
O julgamento do Plano Condor, que iniciou no ano passado na Argentina, pode ajudar a destravar essa árdua marcha pela justiça por meio do caminho da extradição de pessoas amparadas pela legislação de um país, mas puníveis pela de outro. O Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) da Argentina, um dos líderes da investigação regional na matéria, estudou os distintos caminhos que seguiram nestes casos a Argentina, o Brasil, o Chile, o Peru e o Uruguai. Carta Maior conversou com a coordenadora da área de investigação do CELS, Lorena Balardini.
Historicamente, como vocês avaliam a macha das causas de direitos humanos nestes países?
Está claro que cada país tem sua especificidade, mas o que ocorre em um país, seja positivo ou negativo, também tem efeitos sobre os outros. O efeito da jurisdição universal e a detenção de Pinochet, conhecido como efeito Pinochet pelas pessoas que estudam como evoluiu tudo isso na América Latina, teve um claro impacto para os casos nos distintos países. Na Argentina, poucos dias depois da detenção de Pinochet ocorreu a detenção de Videla e Massera pelo roubo de bebês, um dos delitos que podia ser perseguido penalmente por ficar fora do alcance das leis do Ponto Final e da Obediência Devida. No Chile, no mesmo período, começou a apresentação de ações judiciais em massa.
Outro fenômeno regional indiscutível é a importância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos que dá argumentos às Cortes Supremas dos distintos países para que não se possam anistiar crimes de lesa humanidade. A sentença no caso Barrios Altos foi chave para a possibilidade do julgamento de Alberto Fujimori no Peru, e para a inconstitucionalidade das leis de anistia na Argentina.
No informe de 2013, o CELS reconhecia problemas comuns a todos estes países na busca de justiça. Pode-se dizer que alguns destes problemas fazem parte das deficiências dos sistemas de justiça em geral e outros são mais específicos da administração de justiça na área de direitos humanos?
Nós encontramos atrasos na administração de justiça por falta de recursos, problemas relacionados à tomada de testemunhos e de tratamento destes testemunhos, como por exemplo no Chile, onde só recentemente se passou a considerar os sobreviventes como vítimas, ou no Peru, onde existe uma enorme distância cultural entre as vítimas e os operadores jurídicos e não se considera o testemunho das vítimas e familiares como válido em um julgamento por sua suposta parcialidade. Outro problema é a escassa porcentagem de sentenciados em relação aos acusados, algo muito claro no Peru e na Argentina. Há também a recusa de aplicar o direito internacional de direitos humanos em tribunais locais.
Isso é particularmente preocupante no Brasil, Chile e Uruguai, como se viu em uma recente decisão da Corte Suprema de Justiça do Uruguai, que declarou inconstitucional a Lei de Caducidade em 2012. Por último, estão as discussões sobre a anulação das anistias que são matéria corrente no Brasil, Chile e agora novamente no Uruguai.
No Brasil, precisamente, a primeira trava foi a lei de autoanistia dos próprios militares ratificada há quatro anos pelo Supremo Tribunal Federal. O governo de Dilma Rousseff instaurou a Comissão Nacional da Verdade em 2012. O testemunho recente do coronel da reserva Paulo Malhães, reconhecendo torturas e assassinatos, marca os limites deste tipo de idas e vindas. Como você avalia a situação no Brasil?
Entre os países que analisamos no Cone Sul, o Brasil é aquele que menos avançou. Isso tem a ver com a lei de anistia que é muito diferente da do resto dos países do Cone Sul. A vigência desta anistia e a recusa das recomendações do Sistema Interamericano fizeram com que não se avançasse nas causas penais. No ano passado, o novo procurador se manifestou favorável a desmantelar a anistia e a julgar estes crimes. Havia muitas expectativas pelas mudanças no Supremo Tribunal Federal para que esta iniciativa prosperasse, mas são avanços muito graduais. É preciso aguardar qual o impacto que terão os relatórios da Comissão da Verdade nacional e das comissões estaduais que foram criadas. Creio que as informações que estão vindo a público estão rompendo uma ideia muito forte instalada no Brasil de que aquilo foi uma “ditabranda” em comparação com o resto do Cone Sul, por não ter aplicado uma política sistemática de desaparecimentos. A informação que está começando a surgir contrapõe-se a essa ideia.
No ano passado, começou na Argentina um julgamento envolvendo o Plano Condor. Que efeito uma condenação na Argentina poderia ter para os militares ou civis envolvidos nesta operação em outros países?
É preciso levar em conta que, embora as pessoas que estão sendo julgadas são argentinos e um uruguaio, as vítimas são de todo o Cone Sul. É claro que o julgamento está gerando um impacto nos demais países. Sem dúvida, é uma oportunidade para que fique registrado em uma sentença que analise e distribua responsabilidade penal em relação à coordenação da repressão em distintos países. Fala-se de coordenação em geral, mas não está claro como ela funcionou, o que implicou e qual foi o impacto que teve. Este julgamento também é uma oportunidade para a produção de informação, o intercâmbio entre os países e a possibilidade de cooperação na troca de informações.
Ele poderia provocar ações judiciais contra militares e civis de outros países?
É preciso analisar as possibilidades de extradição de cada país. Neste julgamento, há um acusado que é uruguaio, Manuel Cordero, que foi extraditado. O resto dos uruguaios implicados na causa Condir foram julgados e condenados em seu próprio país. A consequência direta disso é que poderiam ser extraditados para a Argentina uma vez que terminassem de cumprir a condenação em seu país. Há antecedentes disso, como o caso de Enrique Aracivel Clavel, o ex-agente da DINA chilena, condenado pelo assassinato do general chileno Prats e sua esposa em Buenos Aires e que foi extraditado para a Argentina onde cumpriu uma sentença de 11 anos.
Foto: Reprodução/Carta Maior
Fonte: Carta Maior
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer