Momento de reflexão, de tomada de consciência e de transformação
Por Egon Dionísio Heck.
Desde o primeiro olhar distante ao abraço desconfiado, à chegada dos deuses esperados, aos invasores chegantes sedentos de conquistas, até hoje uma história majoritariamente pouco e mal contada.
Quem sabe quando nos vem à memória os 50 anos do golpe militar de 1964, do início de mais uma ditadura, seja um momento privilegiado de informação, compreensão, respeito e valorização dos povos originários destas terras brasilis. E, mais do que isso, é preciso não apenas reconhecer o genocídio e o massacre de quase mil povos, numa média de extinção de dois povos por ano, mas fazer justiça aos 305 povos sobreviventes.
O primeiro e fundamental será reconhecer, demarcar e respeitar seus territórios. Não há mais porque esperar. Antes que a bola role na Copa do Mundo, o mundo saberá porque ainda não se pagou essa dívida histórica aos povos indígenas. Antes que a bola cruze a marca do gol, o país sede terá que justificar porque ainda não demarcou as terras indígenas, conforme a Constituição e a legislação internacional. Não existe mais tempo para cinicamente protelar para “depois da Copa”.
Extermínio e a resistência
As guerras declaradas aos nativos e os decretos de extermínio tiveram como consequência o holocausto de mais de 5 milhões de indígenas que viviam no atual território brasileiro. Assim nos relembrava Darcy Ribeiro.
Pouco se conhece da história desse extermínio. A história contada pelo invasor, pelo colonizador, pelas elites políticas e econômicas exalta os dominadores e assassinos de índios e omite a heroica resistência dos povos nativos.
Felizmente existem sinais de mudança. Tanto na sociedade brasileira como no movimento indígena existem iniciativas que buscam reverter esse quadro. A Comissão Nacional da Verdade e a Comissão Indígena da Verdade e Justiça são sinais, ainda tímidos e limitados, desse novo momento.
Em 1968,o grito dos indígenas sobreviventes ecoou Brasil e mundo afora, com a denúncia dos massacres e violências registradas em mais de 7 mil páginas do “Relatório Figueiredo”. Essa situação começou a ser mais intensamente denunciada em diversas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). Uma primeira em 1953, no Senado, e outra na Câmara dos Deputados, em 1963. O drama dos povos indígenas no Brasil repercutiu em todo o mundo, obrigando os governos e o Estado brasileiro a tomar decisões como a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a criação da Funai, em 1967, e indiciar mais de uma centena de funcionários do órgão.
Porém, políticas de massacre, violência e negação dos direitos indígenas continuam até hoje. Isso porque a rigor os povos indígenas vivem submetidos a regimes de opressão e dominação, verdadeiras ditaduras há mais de 500 anos. Prova disto é a política desenvolvimentista em curso, em conflito e desrespeito aos direitos dos povos indígenas, especialmente seus territórios. Em 1973, o documento Y Juca Pirama– “O índio: aquele que deve morrer” foi um novo grito de socorro e denúncia sobre o genocídio em curso. Bispos e missionários denunciaram as atrocidades a que continuavam sendo submetidos os povos indígenas e conclamavam a sociedade a se unir a esses povos para evitar seu extermínio. Os bispos e missionários, articulados no recém-criado Conselho Indigenista Missionário (Cimi), assumiam radicalmente a causa indígena, contra a política indigenista da ditadura militar.
Naquele mesmo ano foi aprovado pelo Congresso o Estatuto do Índio.
Para dar efetividade ao processo de extinção dos povos indígenas, a ditadura militar,através do ministro do Interior, general Rangel Reis, elaborou um projeto visando a “emancipação dos índios”, através do qual pretendia resolver a questão declarando os índios emancipados, e suas terras disponibilizadas aos latifundiários. Desta forma, ao invés de demarcar todas as terras indígenas até 1978, como previa o Estatuto do Índio (Lei 6.001, vigente até hoje), resolveria o problema declarando 80% dos índios como não índios, não tendo direito, portanto, às suas terras, ou confinando-os a lotes do módulo rural.
Apesar do projeto ter sido aparentemente abandonado, por pressão dos povos indígenas e da sociedade brasileira, ele retornou em vários momentos, principalmente no período em que a Funai foi ocupada pelos coronéis, na década de 1980. Nesse período, também foi urdido o famigerado programa dos “critérios de indianidade” pelo coronel Hausen. Critérios racistas, de sanguinidade, mancha mongólica.
O maquiavélico projeto conseguiu unir povos indígenas e seus aliados na sociedade para um grande enfrentamento que resultou na desistência do projeto por parte do governo. As políticas indigenistas da ditadura militar instalaram um forte aparato militar na Funai, a partir dos órgãos de segurança e informação – Conselho de Segurança Nacional e Serviço Nacional de Informação – visando o controle e repressão dos povos indígenas e seus aliados. Instalaram cadeias nos postos e presídios indígenas regionais e nacional, como o Krenak, em Minas Gerais. Foi criada a Guarda Rural Indígena (GRIN) e a Assessoria de Segurança e Informação (ASI). A maioria dos cargos, desde o general presidente da Funai, até o soldado ou cabo, chefe de posto, foram ocupados por militares, da ativa ou da reserva. Dessa forma impuseram um forte esquema de controle sobre os povos indígenas e seus territórios. Mario Juruna, no início da década de 1989, sugeriu que a Funai passasse a ser chamada de “Fundação Nacional dos coronéis”. A Funai, quando criada em 1967, tinha 700 funcionários, chegando a ter mais de 7 mil poucos anos depois. Hoje, não existe mais uma Funai militarizada, mas com fortes heranças desse sistema e totalmente esvaziada.
Os povos venceram o projeto da integração. A sábia e inquebrantável resistência desses povos resultou num quadro bem distinto do almejado por seus inimigos: ao invés do extermínio houve um crescimento surpreendente da população indígena, passando de menos de 100 mil no início da ditadura militar em 1964, para quase 1 milhão, distribuídos em 305 povos e presentes em todas as regiões do Estado brasileiro.
Mais do que isso, na Constituição Federal de 1988, os povos conquistaram o reconhecimento da “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam…” (CF art. 231). São contra essas conquistas que se voltam os ataques violentos dos setores anti-indígenas na atual conjuntura.
Fonte: Brasil de Fato