Por Camila Nobrega e Rogério Daflon.
Pelo menos trinta e duas cidades brasileiras já foram atingidas pelo projeto Minas-Rio, um dos maiores empreendimentos minerários do mundo. Ele começa com a extração de minério na cidade Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, corta dezenas de municípios por onde passa um mineroduto e termina no Porto do Açu, empreitada do polêmico empresário Eike Batista, em São João da Barra, no Rio de Janeiro. Diante de um quadro aterrador, um dossiê inédito elaborado por entidades da sociedade civil reúne informações que dão a dimensão de como os territórios estão sendo devastados social e ambientalmente. A indignação de povos dos dois estados foi transformada em união e combustível para a resistência.
Os grupos de atingidos de São João da Barra e de Conceição do Mato Dentro se conheceram, fizeram visitas mútuas e observaram que as violações numa e outra cidade guardavam trágica semelhança. Eles se juntaram então, a entidades como Ibase, Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB) ,o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) da UFMG e da UFF, para organizar os dados que expõem os estragos desse empreendimento que arrasou modos de vida e destruiu o ecossistema local com o aval dos governos dos dois estados e do governo federal. O cenário, como evidencia o documento, se compõe de graves violações de direitos humanos. A vida dos moradores dessas cidades foi atropelada, e eles viram suas lavouras serem utilizadas para uma concentração de terra sem precedência nessas regiões e os bens comuns, como caminhos, recursos hídricos e a maior restinga da América Latina revertidas para empresas privadas, ou seja, para acumulação de capital.
– A questão fundiária nesse projeto é emblemática. Nesse processo, 30 mil hectares (seis mil em minas e 26 mil no Rio) foram comprometidos – assinala o geógrafo Eduardo Barcellos, da Associação dos Geógrafos Brasileiros.
A falta de senso dos órgãos ambientais – pressionados pelos governos dos dois estados que se deslumbraram com a megalomania dos empresários à frente dos empreendimentos em Minas e Rio – causou distorções que levaram populações a sofrimentos desnecessários.
As compensações ambientais acordadas, por exemplo, não levaram em conta modos de vida tradicionais. Um exemplo disso é o processo pelo qual foi criado o Parque Estadual da Lagoa do Açu,em São João da Barra. Com mais de oito mil hectares e classificado como área de proteção integral, ele se sobrepôs a atividades produtivas tradicionais e impactou a vida de pessoas de dois assentamentos: Che Guevara e Ilha Grande, ou seja, em as áreas de reforma agrária, o que mostra a arbitrariedade e a inconsistência do Instituto Estadual do Ambiente (Inea).
A remoção de famílias foi brutal, tanto em Minas como no Rio. Áreas em que viviam, sobretudo, agricultores familiares e pescadores foram alvo de desapropriações por decretos estaduais, sem qualquer consulta pública, declarando-as de utilidade pública.
Assista ao vídeo que expõe o sofrimento dos atingidos:
– É como se produzir comida não fosse de utilidade pública – disse Barcellos.
O geógrafo ressaltou que a expulsão das pessoas resultou em um processo de formação de novos latifúndios nas mãos de empresários brasileiros e estrangeiros, numa transação avalizada pelo poder público brasileiro.
O ambiente de negócios do projeto Minas-Rio foi pautado pela mania de grandeza dos governos e da iniciativa privada. Perigosamente entrelaçados, não só fizeram vista grossa às violações cometidas nos territórios dos empreendimentos como se tornaram cúmplices. Dados expostos no dossiê mostram que os órgãos ambientais foram ineficientes diante dos constantes descumprimentos de acordos relacionados às condicionantes dos projetos.
Causou espanto que as licenças ambientais, em vez de tratar o projeto como um só, o fragmentaram em três. O Ibama, que por ser um órgão federal deveria dar a licença ao projeto como um todo, só o fez nas áreas atingidas pelo mineroduto. Os órgãos ambientais de Minas e do Rio fizeram as licenças, respectivamente, em suas áreas. Essa divisão não só abriu mão de uma visão completa dos impactos do projeto como também foi responsável pelos descumprimentos de acordos relacionados às populações atingidas e ao meio ambiente. Em Conceição do Mato Dentro, por exemplo, algumas famílias chegaram a ficar sem água como consequência da atividade mineral da Anglo American. Essas pessoas, contudo, estão cada vez mais conscientes. A terra, na vida dessas famílias, é elemento central para a garantia da sobrevivência. Essa é a luta que une os moradores das cidades impactadas, como afirma o pesquisador do Ibase Carlos Bittencourt.
– Nossa aposta é nos intercâmbios entre as diversas resistências do Brasil frente à mineração, a fim de que saiam do seu isolamento local, dialoguem entre si e possam construir uma alternativa nacional a esse modelo destrutivo que devasta tantos territórios no Brasil – disse Bittencourt.
Como os governadores têm ignorado o pedido de diálogo das populações atingidas, várias formas de lutas começaram a ser costuradas. Ao se encontrarem, as populações atingidas de Conceição e São João trocaram angústias, dilemas e impressões. Formou-se uma rede de solidariedade. Nesse processo de resistência, algumas vitórias já foram conquistadas. Há várias ações judiciais em andamento nos ministérios públicos dos dois estados e do órgão federal. No Rio de Janeiro, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) está atenta à questão e já convocou audiências públicas. A isso tudo se somam investigações de caráter trabalhista, tendo em vista as greves de operários da LLX e da Anglo American, que denunciam a precarização do trabalho.
O clima também é de total injustiça ambiental. Em São João da Barra, a maior área de restinga do país está ameaçada.E, provocada pela construção do Porto, a salinização dos terrenos na região prejudicou a agricultura e reduziu a produtividade dos solos a menos da metade.
O que ocorre em Minas e no Rio é o retrato da falta de diálogo do Brasil com os seus diversos brasis. O governo brasileiro tem deixado as portas abertas para os empresários e fechado negócios à revelia das populações que são diretamente afetadas pelos empreendimentos. O dossiê abaixo esmiúça todo esse processo, dando voz aos atingidos. O que eles têm a dizer é tão importante que pode levar a uma reflexão sobre o atual modelo de desenvolvimento do país.
O dossiê disponível na íntegra é assinado por:
Associação de Geográfos Brasileiros Seção Rio de Janeiro / Niterói – AGB
Associação dos Proprietários de Imóveis e Moradores de Pipeiras, Barcelos, Cajueiro e
Campo da Praia – ASPRIM
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Comissão dos Atingidos de Conceição do Mato Dentro
Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – GESTA/UFMG
Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade – PoEMAS/UFJF
Instituto Brasileiro de Pesquisa Socio Econômica – IBASE
Instituto Federal Fluminense – IFF-RJ
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos – NERU/UFF
Núcleo de Estudos em Estratégias e Desenvolvimento – NEED/IFF
Núcleo de Estudos e Pesquisas Socioambientais-NESA/UFF
Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA
Universidade Federal Fluminense – UFF
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
Fonte: Canal iBase.
Foto: Camila Nobrega