O carnaval dos justiceiros

Kuklux 2

Por Viegas Fernandes da Costa.

Sei que não é prudente ficar contando nossos sonhos por aí, principalmente em jornal. Não há nada mais íntimo e verdadeiro em um ser humano, nada mais assustador, do que seus sonhos. Entretanto, este da última noite foi tão aterrorizante e profético, que me vejo na obrigação de compartilhá-lo como quem compartilha um fardo para aliviar seu peso.

Era um desfile de carnaval. Não sei precisar se na “Sapucaí” ou se na “Nego Quirido”, tanto faz. Talvez outra passarela qualquer. Lembro-me de ter olhado para as arquibancadas e estranhar os rostos da multidão, todos iguais e inexpressivos. Na pista, ao longe, aproximava-se o abre-alas, monumental, ostentando uma enorme cadeira elétrica, aquela mesma inventada pelo dentista estadunidense Alfred Southwick em 1881, com o objetivo de servir como meio de execução moderno, eficaz e humano. A cadeira estava vazia, mas exalava um forte cheiro de carne queimada.

Na sequência, aproximou-se a ala das guilhotinas. Era enorme e exuberante! Guilhotinas de variados tipos e tamanhos. O carro alegórico trazia a réplica daquela  criada pelo filantropo francês Ignace Guillotin. Ao vê-la, a plateia começou a delirar e gritava “cortem suas cabeças! cortem suas cabeças!” Os carrascos, fantasiados de Rainha de Copas, solícitos, apressavam-se a mostrar o conteúdo monstruoso dos cestos. Logo entendi tratar-se de um desfile bastante realista. A bateria trazia instrumentos nada ortodoxos. Açoites, machados, garrotes, longas tenazes. Tinha como madrinha a “Virgem de Nuremberg”. O ritmo dos instrumentos vinha acompanhado dos gritos lancinantes dos condenados, na ala seguinte, a das fogueiras. Os passistas traziam archotes nas mãos e estavam fantasiados de cidadãos comuns de diferentes tempos e lugares.

As alas eram muitas, e já não me recordo de todas. Lembro-me, entretanto, das tradicionais baianas, neste desfile representadas pelos membros da Ku Klux Klan em suas evoluções agressivas. O samba enredo era um pouco confuso, falava de família e vingança, de amor e extermínio. À ala da Ku Klux Klan, seguia a dos postes, aos quais vinham amarradas muitas vítimas, todas machucadas. Esta me pareceu bastante familiar, e senti um mau presságio percorrendo meu corpo.

Mas o mais surpreendente veio no encerramento. Passada a última ala, a plateia desceu das arquibancadas, tomou a passarela e seguiu a escola. Só então percebi que estavam todos cegos, e eram muitos! O último a passar trazia um cartaz com a frase “olho por olho e o mundo acabará cego”.

Pareceu-me Gandhi, mas não tenho certeza. Este ainda enxergava.

* Viegas Fernandes da Costa é historiador, escritor e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSC).

Imagem tomada de: lluviadestellos.blogspot.com

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