Por Marco Rigobelli
Dentre todos os comportamentos erráticos que nossa sociedade cultivou, a violência descabidamente seletiva é um dos mais estranhos deles. Se o sujeito parece um bandido, se comporta feito um bandido e comete crimes feito um bandido, por que não espancá-lo e torturá-lo como um bandido? Afinal, não há fim mais óbvio para essa linha de pensamento. Principalmente quando levamos em consideração que nossa definição de bandido tem cara, origem, status e cor. Vivemos no Faroeste moderno onde os justiceiros cavalgam seus Corcéis II 1978, único dono — que esconde um pequeno defeito no escapamento e um desalinhamento no eixo que prejudicariam o tão importante valor de revenda –, e levam os bandidos à forca de cadeado de bicicleta, nus e incapazes de se defender. Porque quando o Xerife nada mais pode fazer para garantir nossa segurança, cabe a nós mesmos irmos lá dar cabo do suspeito — assim mesmo, sem julgamento, sem sequer um direito a socorro. Porque é isso que merece quem temos quase certeza de que possa talvez ter cometido um crime.
Mas isso só é aceito nessa situação específica onde quem tratamos como criminoso é o alvo. Afinal, ele não respeita a ninguém, por que deveríamos nós respeitá-lo? “Esse sujeitinho é bem diferente de mim, eu cometo uns errinhos, mas sou gente de bem“, afirmariam os defensores dos “direitos humanos para humanos direitos”. Se você pergunta “por quê?”, na certa vão responder que “Eu pago meus impostos, tenho família, não roubo ninguém, contribuo com a sociedade. Essa carteirinha de estudante falsa? Não é nada, já viu como os ingressos pra show andam caros?”
E se eu dissesse que devíamos fazer a mesma coisa com ele? Prender em um poste e descer a mão com vontade, aquele tipo de surra que faz o indivíduo não sentir mais o rosto ou abrir os olhos? Provavelmente responderiam “Não, assim não pode, ele não fez nada demais. Não podemos nos entregar a esse tipo de barbárie”. E por quê não? Se é justo bater em um infrator, por que não no outro? Ambos estão desfalcando alguém que de uma forma ou de outra precisa daquele bem; seja ele a vida, os vinte reais da carteira ou os sessenta no ingresso pro show. Por que não estender o comportamento pra todo mundo que comete algum crime?
Vamos lá! Ao Congresso distribuir murros em todos lá dentro sem fazer distinção de credo, cor, opção sexual, posição social ou cargo. Se partirmos do princípio de que todos ali são ladrões, e nós — cidadãos de bem com o saco cheio do descaso desses aí — cuidamos dos ladrões com tortura e espancamento, então devemos nos juntar, ir até lá e darmos uma lição neles. Evidentemente estamos em maior número, e esse é um dos pré-requisitos mais fundamentais para a expressão de nossa violência. Estamos com a faca e o queijo na mão, só precisamos chegar à cozinha que é onde as coisas se resolvem. “Mas não é bem assim”, interromperia alguém. “Nem todo mundo que está lá é ruim e eles não se parecem com bandidos. Também tem gente de bem trabalhando com os ladrões, inclusive um nobre deputado me prometeu uma casa se ajudasse na eleição dele. Pessoa de muito bom coração a quem sou grato.”.
Com esse problema resolvido, podíamos aproveitar a turba ensandecida carregando suas foices, tochas e ancinhos morais, e marchar até os próximos infratores. Fazemos uma blitz na Blitz da Lei Seca e aplicamos a justiça do povo em quem não passar no teste do bafômetro. Vocês já pararam pra ver quanta gente esse pessoal mata? Cadeia não é suficiente para essa corja de crápulas sem moral! “Só que sabe como é, né? Ninguém é de ferro, vê a galera toda na cerveja enquanto você se contenta com sua água tônica. É até injusto”, alega. “Qual o problema em tomar uma ou sete e dirigir? Gente de bem sabe se controlar mesmo sob efeito do álcool”.
Então podemos fazer uma pausa, porque a justiça cansa. Mas seus olhos estão sempre alertas e, graças à internet, todos os lugares são alvos da vigilância dos cidadãos de bem. Logo, podemos aproveitar a oportunidade pra caçar alguns ex-namorados frustrados que ficam espalhando fotos e vídeos de mulheres por aí, eles também merecem o punho intolerante da justiça. “Mas calma lá!, se manifesta alguém na turba. “Nem todos. Meu filho não fez por mal, e ela mereceu — se não queria que ele saísse espalhando por aí, ela que não gravasse”. Outro então observa, “Só que aquele babaca do ex da minha filha, ah aquele vai sofrer. Isso não se faz com uma menina de família! Vou arrancar as bolas daquele filho da puta!”, “Mas esse é meu menino!”, uma terceira exclama exasperada.
Como o mal se corta pela raíz, os justiceiros poderiam começar pelas crianças que atacam, ofendem e humilham umas às outras. Afinal, por que ainda somos tão complacentes e protetores com as crianças? Qualquer um que disser “por que elas são inocentes” não faz ideia da selva que é a quarta série. Já faz algum tempo que não temos mais que defendê-las dos predadores, das outras tribos, ou mesmo de doenças. As crianças nem são mais o futuro da espécie se considerarmos que os humanos são uma falha evolutiva. Convenhamos, não temos mais nada do que proteger nossas crias além de nós mesmos. “Ah, mas meu filho não”, se interporiam. “Esse é só o jeito dele, os outros meninos que são frescos. Não aguentam uns soquinhos, uma brincadeira inocente. A culpa é da mãe daquela menina gorda que não obriga a filha a emagrecer, que não ensina a menina e aguentar brincadeiras. São crianças, oras! Não tem maldade”.
Agora que a origem dos problemas está resolvida, podemos tratar de outros assuntos, como os estupradores. Essa galera que não sabe manter as próprias calças e não deixam as mulheres terem um segundo de paz ao andar na rua. Esses não só merecem a surra como também castração, porque esse mesmo é o ideal, colocá-los um passo mais distante da humanidade que já não é muito abundante neles. Vai fazer eles entenderem que isso é errado. “Ah, mas nem todos também, né?”, uma voz observa. “Alguns só estavam fazendo a obrigação deles, a mulher só faltava pedir. Não fez de vergonha, por isso usa essas roupas aí”. Outra então lembra que, “Pra muitas isso é um favor. Estão há tanto tempo sem que se bobear choram de emoção quando acontece. Então tenho que fazer o que é preciso pra acabar com o sofrimento dela”.
O problema disso tudo é que em alguns desses casos só a surra não adianta. Muitas dessas pessoas vão cometer o sacrilégio de não se arrepender, de não procurar algo melhor com o que fazer da vida, de não saírem do crime pra. Porque eles não têm salvação, eles não querem a salvação, serem homens de bem, de família. Querem só fazer o mal. Logo, o que nos resta, é colocar um fim nisso, puxar o gatilho e livrar nossa sociedade dessa escória — é até melhor, o mundo tá muito cheio de gente, seis bilhões e meio de pessoas fazem muito estrago com o pouco espaço que resta. Mas a medida que vamos fazendo essa limpeza, nos damos conta de que nós também precisamos ser limpos, porque cometemos crimes durante ela. Então somos obrigados a darmos cabo de nós mesmos, e vamos eliminando os problemas, até que não sobra ninguém. E não lembramos porque tudo começou, mas nos sentimos mal porque em algum ponto a violência acabou. Ela fazia parte do que somos, era nossa rotina, nosso dia-a-dia, o início e o fim de tudo, era o que motivava nossa justiça, porque estávamos cansados de tanta violência. No entanto, sempre tem alguém pra dizer: “Olha só, não é bem assim. São coisas diferentes”, sem nunca saber explicar ao certo qual essa diferença.
Fonte: Blog do Marco Rigobelli
Foto: Divulgação