Alain Badiou: “Não renuncio à ideia do comunismo”

Badiou tem sua própria visão sobre a experiência de luta da esquerda e da tentativa de edificação do comunismo no século 20, com a qual se deve debater e da qual se pode divergir na forma e no fundo. Contudo, sua crítica às concepções dominantes na sociedade capitalista revelam um pensamento lúcido e cortante. E sua proclamação sobre o ideal do comunismo não despertam senão convicções transformadoras e uma acesa esperança no futuro da humanidade e na realização da felicidade.

Por Eduardo Febbro
Página12, extraído de CubaDebate

alain211885A figura esbelta, a firmeza juvenil da voz e o aperto de mãos sólido – pouco comum na França – introduzem o personagem real de Alain Badiou. Este filósofo original é o pensador francês mais conhecido fora das fronteiras de seu país. Sua obra, extensa e sem concessões, abarca uma crítica férrea ao que Alain Badiou chama “o materialismo democrático”, quer dizer, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil. Badiou não renunciou nunca a defender um conceito que muitos crêem queimado pela história: o comunismo.

Em sua pena Badiou fala, dito de outra maneira, da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista” não propriamente do sistema comunista em si. Segundo o  filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado. A ideia comunista “ainda está, historicamente, em seus inícios”, diz Badiou.

O horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componentes não são a exposição de um sistema fechado, mas um sistema metafísico exigente que inclui as teorias matemáticas modernas – Gödel – e quatro dimensões da existência: o amor, a arte, a política e a ciência. Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os processos políticos atuais como uma “guerra das democracias contra os pobres”. O filósofo francês é um excelso teórico dos processos de ruptura e não um mero panfletário. Badiou convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traça os limites da “perfeição democrática”, reinterpreta a ideia da República, reatualiza as formas possíveis e não aceitas de oposição e põe no centro da evolução social a relegitimação das lutas sociais.

Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a ideia. Sem ela toda existência é vazio. Com mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua reflexão o tema do amor em um livro brilhante e comovente que acaba de sair na França e no qual o autor de O ser e o  acontecimento define o amor como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais elevado que os indivíduos possam plasmar para viver.

A “ideia” e o “materialismo democrático”

– Você defende um princípio básico de nossa inscrição na existência, do qual se desprendem também nossos compromissos políticos: uma vida sem ideias não é uma vida.

– A verdadeira pergunta da filosofia consiste em saber o que é uma vida verdadeira, o que é viver, o que é o destino. Mas a filosofia deve aportar respostas mínimas a estas perguntas. Minha resposta, que é simultaneamente uma hipótese e uma conclusão, é que a verdadeira vida é uma via que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outra maneira, uma vida que aceita ser outra coisa que uma vida animal. Em todas as situações sempre persiste a vontade de querer algo e essa vontade só tem sentido em relação com uma vontade de transformação.

– Como se inscreve essa ideia da ideia em plena ditadura do que você chama “o materialismo democrático”? Em suma, como existir, com que ideia, em um mundo onde tudo tem forma de produto?

– Esse é  o principal problema da vida contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve ser transformado en produto, em mercadoria, incluídos os textos, as ideias, os pensamentos. Marx tinha antecipado isto muito bem: tudo é mensurável segundo seu valor monetário. O que é então uma vida sob o  signo da ideia em um mundo como este? Faz falta uma distância com a circulação geral. Mas essa distância não pode ser criada apenas com a vontade, é necessário que algo aconteça conosco, um acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao que ocorreu. Pode ser um amor, um levantamento político, uma decepção, enfim, muitas coisas. Ali se põe em jogo a vontade para criar um mundo novo que não estará à disposição do mundo tal como ele é, com sua lei de circulação mercantil, mas por um elemento novo de minha experiência.

A “ideia comunista”

– Você é um dos poucos pensadores que ainda defendem isso que você chama “a ideia comunista”. Você apresenta o comunismo como uma ilusão atual.

– Sei muito bem que algumas tentativas que se reivindicaram comunistas fracassaram porque não conseguiram criar o mundo novo que pretendiam e terminaram provocando danos consideráveis e situações terríveis. Temos duas opções: ou dizemos que essa hipótese comunista de um mundo que não estaria regulado pela mercadoria, o produto, não pode ser realizada, então nos resignamos ao mundo tal como é; ou mantemos a hipótese comunista. Se a mantemos também há que conservar l palavra. Se da experiência histórica sacamos a conclusão de que é preciso abandonar a palavra, isso seria um retrocesso não necessário. Podemos fazer nosso próprio balanço do que ocorreu no século 20 a partir da possibilidade de redefinir o que é o comunismo como possível porvir. Essa é minha escolha. Sei que se trata de um trabalho longo que requer muita reflexão e que será mais mundial do que antes. A primeira batalha consiste em manter a força e o significado dessa palavra.

– O que se pode recuperar, o que se pode voltar a ler, do que foi com todo um naufrágio real na prática do comunismo? Que mensagem ainda existe na ideia comunista?

– Creio que podemos voltar ao que o comunismo queria dizer não só para Marx mas para muitos revolucionários do século 19. Para eles, o comunismo tinha um sentido comum que era a ideia de uma sociedade extraída do princípio do interesse, quer dizer, uma sociedade que não está governada pelo fato de  que um homem persegue seu interesse mas pela ideia da associação dos homens. É essa associação  que define os projetos ou as metas coletivas. No século 20, essa idéia se converteu na de um  Estado todo poderoso que resolve todos os problemas apresentados à sociedade. Entre a definição do século 21 e a do 20 há uma enorme distância.

– O que ocorreu entre as duas?

– A obsessão do poder. As organizações operárias, militantes, revolucionárias, que tinham sido esmagadas várias vezes no século 19 se obsedaram com a ideia do poder e a pergunta “como vencer?”. Houve duas alternativas a essa convicção: estão os que se uniram à democracia parlamentar ordinária com a ideia de vencer fazendo-se eleger. Mas, claro, foram eleitos e não mudaram  nada, o mundo continuou sendo o mesmo. Do outro lado, estão is que se lançaram na organização da sublevação armada. Mas, lamentavelmente, o fizeram mediante a militarização violenta da ação política que desembocou em Estados militarizados que resolviam os problemas com a violência. Chegamos de alguma maneira a um final porque nem a hipótese da via pacífica e eleitoral, nem a hipótese de um aparato estritamente militar encarregado de resolver os problemas políticos conduziram ao comunismo segundo o sentido original do termo. E o problema da ação política atual é totalmente obscuro. Assistimos a uma mundialização capitalista desenfreada e nela as forças políticas dão mostras de mais debilidade do que de força.

A impunidade e a violência

– Seja qual for a situação mundial em que nos encontremos, na África, no Oriente Médio, na Ásia, na América Latina ou nas democracias ocidentais, enfrentamos a mesma indolência, a mesma selvageria, a mesma impunidade, a mesma assimetria por parte dos poderes, a mesma violência.

– Estou profundamente convencido de que a forma na qual a sociedade está organizada em escala planetária alenta e cria estímulos à violência. A razão principal radica em que, para o sistema, a realidade humana é a competição. A ideia de Hobbes segundo a qual o homem é um lobo para o homem constitui a convicção profunda de nossa sociedade. Por essa razão gera violência constante: a sociedade dá o direito geral para que, em seu próprio interesse, se pisoteie os demais. A imprensa  mais ordinária faz o elogio dessa violência. Os jornais falam de como tal banco esmagou outro, como as pessoas foram expulsas, etc., etc. Isso, dizem, é a vida, a competição. Mas é preciso pagar o preço. Enquanto não enunciemos que as sociedades devem ser construídas com  base na associação e não na competição, permaneceremos no elemento primordial da violência. Não digo que a violência vai  desaparecer. A sociedade estimula sistematicamente a violência e logo se vê obrigada a combate-la com uma repressão terrível. Como a violência está constantemente incitada, é preciso um aparato policial para controlá-la. O resultado é que terminamos agregando à violência social a violência do Estado. Devemos mudar os pilares da existência coletiva. Mas o ser humano é capaz de outra coisa diferente de toda essa violência: é capaz de entrega, de amor. Tem uma dupla capacidade. Pode ser um animal de competição mas também um animal altruísta, interessado na ação coletiva, capaz de encarnar ideais, pode ser um namorado ou um cientista desinteressado. Saber que aspecto do ser humano alentamos é uma decisão fundamental.

– No seio dos sistemas políticos ocidentais há algo que se degradou profundamente no último quarto de século. Essa evolução drástica está perfeitamente retratada nos seus livros: O Primeiro Manifesto pela Filosofia, dos anos 1980, e o Segundo Manifiesto, publicado no ano passado.

– O Primeiro Manifesto recolhe as últimas esperanças do mundo de antes. Mas nos últimos vinte anos houve coisas essenciais que mudaram, entre elas a hegemonia do capitalismo liberal competitivo e violento. Interveio também outra coisa: uma sorte de clara cumplicidade com esse sistema por parte dos intelectuais, inclusive os franceses. Foi  uma forma de dizer que não se pode fazer nem esperar outra coisa, que o mundo natural é assim. Isto se acelerou com o desaparecimento da  União Soviética e dos Estados socialistas. Em minha opinião estes já tinham morrido há muito. Sua experiência já não tinha mais força, já não propunha nada de novo à humanidade. O certo é que o desaparecimento completo de tudo isso foi vivido pelo capitalismo liberal como uma vitória que lhe abria o espaço do mundo inteiro para expandir-se. As formas de violência e de cumplicidade intelectual com essa violência se desenvolveram muito. Creio que isto se iniciou nos finais dos anos 1970. A nova figura fundamental é que a opinião, em vez de estar drasticamente dividida, é maciçamente consensual. Este resultado muda o horizonte, a perspectiva de um filósofo. O filósofo é aquele que sempre luta contra as opiniões dominantes, quer dizer, as opiniões do poder. Hoje o combate é muito mais complexo e singular do que o dos anos 1960. Naqueles anos os filósofos críticos e comprometidos politicamente dominavam o cenário intelectual. Isso pertence ao passado. Hoje são os cães de guarda dos que mandam. Durante os anos Bush, estivemos numa combinação extraordinária de violência e de mentiras. No fundo, os ocidentais, inclusive a população, foram culpados porque aceitaram tudo isso. É preciso sair disto. A humanidade não poderá continuar nesse caminho, sob pena de ir rumo a sua eliminação. Trata-se de reconstruir uma visão do mundo e da ação afastada deste horror.

A ilusão tecnológica

– A tecnologia faz parte também desta sociedade, desta violência. As novas tecnologias instauraram uma sorte de ilusão igualitária, que é muito chata, que parece dizer em filigrana: já que estamos conectados, todos somos iguais. Porém, não há nada mais virtual que essa igualdade. A realidade está presente, as diferenciações são patentes, o pensamento tecnológico contaminou o pensamento humano.

– A tecnologia é a realização de uma ideologia que existia antes. Creio que é a ideologia  que cria a tecnologia, e não ao contrário. Esta falsa concepção da igualdade é muito antiga. A desigualdade atual considera de forma abstrata que os diferentes indivíduos são iguais. Pretende-se fazer crer que os individuos têm a seu alcance o mesmo sistema de possibilidades. As pessoas não têm a mesma realidade, mas se argumenta que contam com as mesmas possibilidades. É a mitologia com a qual se dizia que nos Estados Unidos  o vendedor de jornais pode converter-se num milionário e, por conseguinte, é igual a qualquer milionário. Com esse argumento, a única diferença radica em que um realizou a possibilidade de ser milionário e o outro não. Há então uma concepção tradicional e falaz da igualdade própria ao mundo burguês e competitivo. Todos podemos competir! Essa é a igualdade competitiva. Mas penso que a tecnologia da Internet e a conexão universal são a realização material e tecnológica dessa ilusão igualitária. Essa ilusão está muito ligada ao materialismo democrático porque inclui a ideia de que todas as opiniões valem e são iguais. Estamos conectados e o que eu digo vale tanto como o que outro diz! Desde que as coisas circulem, elas têm valor. Isso é falso. O real continua sendo violentamente desigual, competitivo, brutal, indolente. Não basta ter uma máquina na qual possamos dizer o que pensamos para aceder à igualdade. Na realidade, quanto mais se expande esse tipo de igualdade ilusória, menos poder têm as pessoas. Observe a crise que vivemos: estávamos todos conectados e de pronto irrompeu a realidade para nos dizer: Atenção, de uma hora para outra tudo pode ruir! A crise veio recordar que esta sorte de euforia igualitária na qual estávamos era artificial. No mundo competitivo a igualdade é sempre artificial. E essa igualdade artificial pode ser uma igualdade tecnológica justamente porque a tecnologia é um artifício.

A reinvenção do amor

– Você é um dos poucos filósofos contemporâneos que introduziu em sua reflexão algo único, quer dizer o amor. Você repete freqüentemente que é preciso reinventar o amor. Como se faz isso?

– O amor é um gesto muito forte porque significa que é necessário aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa preocupação. Minha ideia sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à competição, à selvageria; uma vez que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige um tipo de confiança absoluta no outro; uma vez que vamos  aceitar que esse outro esteja totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, já que todo isto é possível, isto nos prova que não é verdade que a competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do mundo. O amor está ameaçado pela sociedade contemporânea. Essa sociedade bem que gostaria de substituir o amor por um tipo de regime comercial de pura satisfação sexual, erótica, etc. Então, o amor deve ser reinventado para defendê-lo. O amor deve reafirmar seu valor de ruptura, seu valor de quase loucura, seu valor revolucionário como nunca o fez antes. Não se deve deixar que o amor seja domesticado pela sociedade atual – que sempre busca domesticá-lo-. Em outros tempos, as sociedades clericais e tradicionais buscaram domesticá-lo pelo matrimônio e a família. Hoje se busca domesticar o amor com uma mescla de pornografia livre e de contrato financeiro. Mas devemos preservar a potência subversiva do amor e afastá-lo dessas ameaças. E isso é extensivo a outras coisas: a arte também deve afastar-se da potência do mercado, a ciência igualmente. Ali onde há um pensamento humano ativo e desinteressado há um combate para libertá-lo dos interesses.

– Você também diz que o amor é um processo de verdade.

– O amor traz à tona o que é uma diferença. No amor aceitamos pormo-nos a dois para explorar não o que acreditavam os românticos, quer dizer, a fusão, mas o que é aceitar a diferença do outro, aceita-la apaixonadamente. O amor é todo o contrário do individualismo que nos propõem. O que nos propõem é uma soberania do indivíduo, mas na realidade o indivíduo só é soberano  de seus próprios interesses. Enquanto fazemos algo interessante, deixamos de ser soberanos. Se realizamos uma demonstração matemática os outros matemáticos virão verificar se é certa, dependemos deles. No amor ocorre o mesmo. A soberania é compartilhada com a presença do outro. A idéia da soberania individual é pobre porque exclui as atividades interessantes da vida humana. O indivíduo se torna criador quando aceita deixar de ser soberano.

– O que resta a um casal enamorado num mundo como este? A revolta, a música, a poesia, o sexo, a indiferença, a violência, a sabedoria? Quais são os eixos de uma emancipação positiva em face desta máquina infernal que é o mundo?

– Na situação de crise e de desorientação atual o mais importante é manter as mãos sobre o timão da experiência que estamos levando a cabo, seja no amor, na arte, na organização coletiva, no combate político. Hoje, o mais importante é a fidelidade: em um ponto, ainda que seja apenas um, é preciso tratar de não ceder. E para não ceder devemos ser fiéis ao que ocorreu, ao acontecimento. No amor é preciso ser fiel ao encontro com o outro porque vamos criar um mundo a partir desse encontro. Claro, o mundo exerce uma pressão contrária e nos diz “cuidado, defenda-se, não se deixe abusar pelo outro”. Com isso se nos está dizendo “voltem ao comércio ordinário”. Então, como essa pressão é muito forte, o fato de manter o timão voltado para o rumo, de manter vivo um elemento de exceção, já é extraordinário. É preciso lutar para conservar o excepcional que nos ocorre. Depois veremos. Dessa forma salvaremos a ideia e saberemos o que é exatamente a felicidade. Não sou um asceta. Não sou a favor do sacrifício. Estou convencido de que se conseguimos organizar uma reunião com operários e pomos em marcha uma dinâmica, se podemos superar uma dificuldade no amor e nos reencontramos com a pessoa que amamos, se fazemos uma descoberta científica, então começamos a compreender o que é a felicidade. A felicidade é uma idéia fundamental.

Fonte: Vermelho.

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