A toupeira e o João- de barro

horneros 2

Por Carmen Tornquist.

No seu livro“A nova toupeira”, dedicado a analisar as mudanças  políticas recentes na América latina,o sociólogo Emir Sader explica as razões da escolha deste instigante titulo, dizendo o seguinte: “A expressão a velha toupeira foi consagrada em Marx no 18 do Brumário de Luis Bonaparte, depois de descrever como o enfrentamento de classes na França parecia desembocar numa espécie de empate nas horas de derrota, em todas as classes se prostravam diante da culatra do fuzil”. No entanto, retoma ele: “… a revolução é radical. Ainda está passando pelo purgatório. Escuta metodicamente a sua tarefa. E quando tiver concluído esta segunda metade do seu trabalho preliminar, a  Europa se levantará de um salto e exclamará exultante: Belo trabalho, minha velha toupeira”. “Antes dele Shakeaspere já havia citado o animalzinho em Hamlet: Bem dito, velha toupeira. Você trabalha tão bem no interior da terra. É uma notável sabotadora. Hegel teria também se referido à toupeira, para falar das astúcias e surpresas da história: É necessário que as grandes revoluções, evidentemente necessárias, sejam precedidas por uma revolução silenciosa e secreta das idéias da época, uma revolução que não é visível para todos”. E ainda, prossegue Sader, Daniel Bensaïd diz que “se trata de um bichinho míope, e hemofílico, duplamente enfermo e frágil, mas dotado de grande paciência e obstinação. Uma obstinação na busca da claridade e da luta. Circula assim, a toupeira, entre a terra e o céu, entre a sombra e a luz, entre as profundezas e a superfície. Míope, teria dificuldade de se adaptar a luz, depois de tanto tempo nas trevas, ou para se defender do alumbramento. Quando se retira para as profundezas da terra, não é para invernar, mas para  perfurar mais fundo. Não retorna o lugar de partida, mas refaz o caminho de volta de outra maneira, sempre. Quando não se deixa ver, não é porque desapareceu, ela simplesmente se torna invisível. Mas a toupeira está sempre cavando”(Sader: 2009,36). Com tantas deficiências, é realmente notável que a  toupeira – a quem se atribui até mesmo falta de inteligência(!) –  tenha tanta força e determinação.

Tenho recorrido a metáfora da toupeira, para recompor minhas forças  e para  pensar  que, apesar de todas as durezas da realidade, há muita gente trabalhando no sentido contra-hegemônico, construindo pacientemente  algo diverso do que a lógica  enlouquecida e voraz do capital  nos  oferece, todos os dias. O exemplo mais recente refere-se  à sanção do plano diretor  que deverá “regular” (!) a nossa cidade(!).( mas a lista  é longa) um outro  mundo – bem diverso do que aqui está- esta sendo, discreta e lentamente, urdido. As derrotas  no sentido de quem busca este outro mundo,  de fato, tem sido grandes nestes últimos anos. No Brasil, em SC,  e em Florianópolis, mais, ainda, a roda viva não é para principiantes, deixa marcas e  promove desesperança… Tem dias que a gente se sente… como quem partiu ou morreu…

Foi na vibração da toupeira, no entanto,  que comecei a reparar em um outro bicho, uma ave,   na verdade, (pois é preciso voar) conhecida: o João de Barro. Reparei que ele monta seu ninho em espaços urbanos os mais bizarros: já os vi ao lado de semáforos, bem alto, trazendo um toque rústico a este moderno equipamento sem o qual a cidade seria hoje impossível; ele e/ou ela também situa sua “oca” em janelas de altos edifícios, ao lado de out-doors espetaculares que tentam nos vender  mais uma mercadoria. Um observador atento e sensato percebe com facilidade a presença desta casinha de barro tão parecida com a “saudosa maloca” onde tantos brasileiros passam dias felizes(?) de suas vidas…

Fui então pesquisar um pouco mais sobre esta ave, e descobri coisas lindas a seu respeito:

O João de Barro é uma ave sul-americana, circula pelos países do Cone sul nos quais a Mata atlântica ainda estende suas energias: Uruguai, Paraguai, Brasil Bolívia e Argentina. Tendo a achar que é uma ave guarani, pois estes países são também  espaços tradicionalmente ocupados por estes indígenas. Na Argentina, território considerado sua terra originária, antes da livre dispersão pelas terras baixas da América do sul, também é conhecido como hornero, dado sua incansável gana de construir seu ninho de barro, espécie de “forno amigo” onde coabita com sua fêmea(haverá uma Maria de Barro?), segundo alguns autores, com destacada dedicação e amorosidade. Mas, apesar da maloca de barro que ergue com a mesma obstinação da toupeira – que advém originalmente da Europa- o João de Barro, ave que é, gosta das alturas, atravessa o céu de anil do Cone sul, mas não sem valorizar as chuvas; de onde tira o barro para (re)montar o seu casulo. O hornero é também chamado de ogaraity ou guyra tatakua, e ao que tudo indica, articula muito bem sua natureza libertária e aventureira – mobilidade permanente – com a construção – provisória, mas intensa – de moradias. Neste particular, lembra muito os  povos guarani, que também insistem em permanecer  nestes  beligerantes territórios. De origem rural, de onde mantém seu espírito aventureiro e despojado, o João de Barro se adaptou à realidade urbana de seu próprio modo: mesmo com restrições, reconstrói seu modo de ser permanentemente, tal qual a velha toupeira, com quem compartilha invisibilidade, obstinação e força.

As empresas responsáveis pela iluminação das ruas e das sinaleiras não hesitam em destruir os ninhos erguidos nos altos fios das metrópoles e das pequenas cidades, mas o João de Barro, diferente da sua parenta – retorna também aos antigos territórios, aproveitando as sobras da demolição ou erguendo de novo seu ninho, com novos estoques de barro recolhido em suas andanças ao léu, sabedor de que este caminho  “é trabalho sem termo” (como diz Cecília Meirelles. Da sua lida o João de Barro  não desiste nunca.

Fontes

GUASCH, S. L. (coord.)Diccionario Guaraní- castellano.Sevilla/Asunción, Edictora Cristo Rey. 1961.

 MEIRELLES, Cecília.  Hoje desaprendo o que tinha aprendido ontem. Cecília Meirelles: Poemas completos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira.1982.

SADER, Emir. A Nova Toupeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.

E as canções:

Novamente(Alexandre Lemos e FredMartins, 2007)

Roda viva(Chico Buarque, 1967)


Imagem tomada de: viajes.elpais.com.uy

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