A G. me enviou este relato.
m primeiro lugar muito obrigada! Mesmo! Por se doar a causas tão nobres. Por ser tão elevada. Por ser essa pessoa maravilhosa que você é! Minha vida mudou depois que comecei a ler seu blog!
Há algum tempo penso em escrever esse texto e hoje me sobrou tempo então resolvi relatar esse acontecido. Tenho certeza que você sabe que isso tudo acontece sempre, mas sei lá. Tive vontade de te contar, até para você saber como funciona o relacionamento interpessoal em uma grande empresa! Ambiente coorporativo não é fácil!
Tenho 31 anos e trabalho em uma empresa multinacional na área comercial. Sou formada em Comunicação Social. Presto trabalho voluntário em uma organização que apóia adolescentes grávidas. E isso é só uma parte de quem eu sou.
Acontece que de uns dois anos para cá venho me inteirando mais e mais sobre o feminismo e as lutas diárias da mulher na sociedade. Como sou curiosa, também comecei a ler mais e mais textos sobre misoginia [ver abaixo], direito de minorias, igualdade social etc e tal.
Lola, um mundo novo se abriu na minha frente! Eu era machista! O mundo é machista! Eu era preconceituosa! O mundo é preconceituoso! Eu já sofri abusos verbais e não notei! Já sofri abusos físicos “leves” (aquela passada de mão no carnaval, sabe?) e “deixei pra lá”! Meu noivo solta frases machistas. Meus amigos soltam comentários maldosos! Minha equipe no trabalho tem pessoas homofóbicas! Meu mundo caiu!
Enfim, esse breve resumo de quem eu sou e um pouco do que eu penso serve agora para abrir o tema do texto.
FALAR DE ESTUPRO TE ROTULA AUTOMATICAMENTE COMO ESTUPRADA.
Lola, é isso mesmo que você leu!
Ultimamente eu tenho percebido que se eu me posiciono em relação a assuntos ligados a estupro, as pessoas olham pra mim ora com cara de dó, ora com cara de dúvida, ora com cara de espanto.
Minhas suspeitas se confirmaram esses dias. Estava almoçando junto com o pessoal do trabalho e entrou no assunto uma menina que foi estuprada no ônibus com uma arma na boca. E eu nem sabia dessa notícia, porque nem sempre tenho tempo de ler tudo.
Acontece que uma das pessoas na mesa fez o seguinte comentário: “Imagina? O cara conseguiu estuprar a menina e segurar a arma? Ela foi trouxa! Dava para ela ter feito alguma coisa! Tirado a arma do cara, sei lá… esse povo é muito mole!”
Ai Lola… Se tem uma coisa que não consigo é ficar quieta nessas situações. Como era horário de almoço e eu não estava dentro da empresa, fiz o mesmo que todas as pessoas da mesa estavam fazendo: dei minha opinião.
Falei que pessoa que sofre violência fica sem ação, que precisamos parar de culpar as vítimas, que precisamos entender que isso acontece sempre e precisamos começar a nos revoltar com isso. Disse que somos todas donas de nosso corpo. Enfim, falei tudo que qualquer pessoa um pouco menos alienada falaria. Sem me exaltar, sem levantar a voz.
E como quase sempre acontece, algumas pessoas da mesa ficaram me olhando com cara de espanto. Algumas concordaram, outras continuaram tirando sarro, mas eu falei. Fiz minha parte.
Depois do almoço fui ao banheiro e entrei na frente. Duas colegas que não sabiam que eu estava ali entraram e passaram a falar de mim. Segue o diálogo:
Colega de trabalho 1: “Nossa, você viu como ela defende as vitimas de estupro? Certeza que aconteceu com ela.”
Colega de trabalho 2: “Taí! Tá explicado por que ela não emagrece! Deve ser por causa do trauma!”
Colega de trabalho 1: “Por isso que ela vai ajudar essas meninas grávidas. É um jeito de apagar o trauma. Tadinha! Tomara que ela supere isso tudo!”
Gente! Gente! Geeeente! Para tudo! Quantos erros você encontra no diálogo acima, Lola?
TODOS OS ERROS DO MUNDO, LOLA!
Falar de estupro e defender a vítima me tornou imediatamente estuprada. Traumatizada. Meu sobrepeso foi automaticamente “justificado”. Além disso, acharam até uma “justificativa” para um trabalho voluntário. Além de ter me tornado “uma coitada”.
Minha reflexão em relação ao assunto: não é possível que o direito das mulheres seja tão tabu a ponto de ser rotulada só por defender uma vítima (ou todas) de forma aleatória.
Não fiquei ofendida! Sou grata por nunca ter passado por um estupro. Mas fiquei triste, porque se falar sobre o assunto é tão complexo que as pessoas perdem o foco do tema central, como poderemos ter a igualdade defendida?
Em tempo: falei com essas colegas e expliquei que não fui vitima de violência. Não é preciso ser vítima para ser contra. Enquanto só as vítimas gritarem (isso quando gritam, a maioria se cala) e o resto do mundo se calar, sempre teremos vitimas e mais vítimas!
Lola, estou te contando isso para que você saiba como mudou minha vida! Hoje eu tenho OPINIÃO! De novo: obrigada!
Meu comentário: Essas associações são ridículas mesmo, G.! Não falar de estupro é sem dúvida uma estratégia de calar — não o crime em si, mas as sobreviventes. Contribui para a espiral de silêncio em torno do tema, e este silêncio contribui para que o estupro não seja combatido como se deve.
Vez por outra algum machista fica revoltado (não com os casos de estupro, e sim com a nossa insistência em falar deles), e pergunta, exaltado: “Por que feminista fala tanto de estupro? Elas todas foram estupradas? Ou será alguma fantasia?” Geralmente esses “questionamentos” vêm acompanhados de “Quem iria querer te estuprar?!”, provando, mais uma vez, como são ignorantes.
Eles realmente acham que estupro é um desejo incontrolável de um homem ao ver uma mulher! Assim: só mulheres dentro do padrão de beleza são estupradas! Nunca se ouviu falar de meninas de oito anos estupradas! Nem de velhinhas de 80! Mulher gorda de qualquer idade ser estuprada, nem pensar! Homens hétero estuprarem homens? Jamais! Não, estupro é só o que acontece quando um homem não consegue frear seus instintos naturais. E depois nós feministas é que somos acusadas de dizer que homens são estupradores em potencial!
A gente fala tanto em estupro porque estupro é uma praga na nossa sociedade, ué. Porque existem pouquíssimas mulheres (mulheres, não feministas — nem toda mulher é feminista, nem todx feminista é mulher) que não tenham uma história de horror pra contar. Nem todas as mulheres foram estupradas, mas a ameaça de estupro é uma constante na vida de toda mulher. E todo mundo deveria combater o estupro. Infelizmente, tem homem que só quer falar de estupro se é pra fazer piadinha de estupro…
Mas este adendo é mais pra falar sobre misoginia. É que prometi pra Rosana Hermann explicar o que é misoginia na primeira vez que usasse o termo no ano. Porque, segundo ela, muita gente está usando a palavra indevidamente, o que a torna ultrapassada:
Eu discordei, claro. Precisamos de palavras para descrever o que vemos. Este é um princípio básico da linguagem. E, se a misoginia continua firme e forte, obviamente precisamos de um termo que a defina. Mas, nos últimos tempos, misoginia tem deixado de ser exclusivamente o que suas raízes fazem significar (ódio contra as mulheres) para se tornar quase um sinônimo de um machismo mais violento, vamos dizer assim.
O que misoginia não é: ser rude com uma mulher ou chamá-la de burra não é necessariamente misoginia. Assim como não é racismo chamar um negro de, sei lá, “barbeiro” no trânsito. Se você chama alguém de estúpida por ela ser mulher, aí sim pode ser considerado misoginia (embora eu prefira o termo machismo ou sexismo nessa situação mais light).
Eu gosto mais das graduações. Algo como: machismo é a teoria, misoginia é quando se coloca a teoria em prática. Mas reconheço que essa definição é limitada, porque misoginia não precisa ser física.
Fonte: Escreva Lola Escreva.